31.7.06

DAS ESPERAS

Rafal Olbinski - Espera

A buganvília secou.
Não esperou pelo solstício.
Duas vezes floria em cada ano.
Viu uma vez a neve
e decidiu que tinha visto tudo.
Desistiu.
Florir sempre também cansa.
Recusou beber a água fria
com sabor a terra e a animais
enrijeceu as hastes
despediu as folhas
e ao vento as entregou.
Quando vierem as abelhas
já não encontrarão a mesa posta.
Ficaram os espinhos e
as marcas na parede.
Não passou testemunho mas
a festa escarlate dos seus cachos
perdurará na memória das abelhas.

Levantou a louça da mesa, lavou-a e pô-la a escorrer. Ele foi sentar-se no sofá a ler o suplemento de economia do jornal diário. Esperou que ela viesse sentar-se ao lado dele. Anunciou: Vai começar a telenovela. Estranhou o toc-toc dos sapatos de salto alto pelo corredor. Tem o péssimo hábito de andar descalça. Vestida para sair. O saco de fim-de-semana ao ombro. Olhou-a mas não lhe encontrou os olhos. Só a voz: Não esperes por mim.

No bairro ganhou o nome de o Espera-a-Mulher. Na paragem de autocarro. O das dezoito e vinte e quatro. É ali que se encontram quando voltam dos empregos. Espera que saia o último passageiro. Ela às vezes distrai-se a pensar sei lá em quê e não repara que chegou ao destino. Amanhã voltará.

Aprendeu a lavar a loiça e pô-la a escorrer. Espera não voltar a ouvir o toc-toc no soalho do corredor. Já o alcatifou.

Licínia Quitério

20.7.06

JORGE DE SENA


NOUTROS LUGARES

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é tanto que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.

É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.

O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância permitissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.

Aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.


JORGE DE SENA


Nunca o Poema é longo se tão belo.

Licínia Quitério

Notas:
1. Num intervalo do descanso, passei para vos deixar esta prendinha.
2. Foi com pesar que soube do encerramento do blog do Jorge Esteves. Penso traduzir o sentimento de muitos de nós ao afirmar: "Amigo Jorge, sentimos muito a falta da inteligência e da generosidade do seu unicórnio azul. Que seja muito feliz no mundo real e, se puder, volte a esta esfera onde tão boa companhia nos fez. Um grande abraço."

Licínia

7.7.06

DA PREGUIÇA


Fiodor Vasiliev - Prado Húmido

A preguiça envolve a tinta das manhãs.
Uma coberta a invadir a cama o quarto a casa.
A luz é baça e morna.
A vontade um bicho invertebrado.
Por fora da preguiça tudo é vidro.
Preguiça não tem porta.
Só umbrais.
Ranhura em casca de ovo.
A preguiça vencer é um desafio -
transpor a abertura
ousar ir ao combate
sem temer arestas afiadas e
acreditar nos braços promissores do aloés
.

A sua divisa era "Tem tempo...". Nunca tinha pressa. Nunca alguém lhe ouviu dizer "Despacha-te!". Os relógios, para ele, eram máquinas maravilhosas que a sabedoria dos homens tinha construído desde o princípio do céu. Para medirem o tempo do universo. Projectava relógios de sol. Os que mais o seduziam. Não os concluia. "Obra pensada já existe", dizia. Preguiçoso, chamavam-lhe. Tomava isso como um cumprimento. Nunca perdeu tempo. Ganhou-o todo. Pensar era o seu ofício, a sua paixão. Recusava agir, a não ser para produzir perfeição e beleza que, afirmava, são uma e a mesma coisa. Dada a raridade de oportunidades de o conseguir, preguiçava muito. Dormia pouco. Havia tanto para aprender. Mesmo quando não lia, os olhos profundos moviam-se incessantemente a decifrar o grande livro da vida e das pessoas que tanto amava. Foi o ser humano mais preguiçoso que conheci. Acho que os antigos lhe teriam chamado um Sábio. Prefiro lembrá-lo como um Homem Bom. A preguiça sente a sua falta.

Licínia Quitério

Recado para os Amigos:

Até Agosto, a minha presença no blog vai ser apenas fortuita. Razão? Férias. Não terei oportunidade de vos comentar, nem de vos retribuir as sempre amáveis visitas e ainda mais generosas palavras. Tem sido uma convivência que superou as minhas melhores expectativas. Por aqui têm passado palavras lindas, inteligentes e afectuosas. Como sabem, as palavras são para mim objecto de adoração, por isso vos declaro como me sinto feliz por vos ter encontrado. Atrevo-me a dizer que já reflectimos, rimos e chorámos juntos. Tudo num mundo chamado virtual. Embora. Daí há gente. E gente bonita. Daqui estou eu, disposta a continuar convosco esta partilha gostosa, até onde as minhas capacidades o permitirem. Bem hajam.

Licínia

3.7.06

DA DIGNIDADE



Francisco de Goya - Os Fuzilamentos do 3 de Maio de 1808

A que morreu às portas de Madrid,
com uma praga na boca
e a espingarda na mão,
teve a sorte que quis,
teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
depois de um saque - antes a deu
a quem lha desejou,
na lama dum reduto,
sem náusea mas sem cio,
sob a manta comum,
a pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
entre «champagne», aos generais senis,
as horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
agasalhos pueris,
no sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
num heroísmo branco,
de bicho de hospital,
a aflição dos aflitos.
Uma noite, às portas de Madrid,
com uma praga na boca
e a espingarda na mão,
à hora tal, atacou e morreu.
Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

REINALDO FERREIRA

Você trabalha para nós há muitos anos já. Sabe que gostamos do seu trabalho. Sabe que é mesmo uma das pessoas mais competentes da nossa empresa. Os clientes fazem muito boas referências a seu respeito. E é muito bem vista pelos seus colegas. Nem todos, claro. Você sabe porquê. Ninguém gosta de ser chamado de traidor. Lá porque não alinharam naquela greve, não quer dizer que não sejam boa gente. Onde é que eu quero chegar? Não, sabe bem que nós não queremos saber da política de cada um. Por você ser mulher? Nem pense nisso. Na nossa família sempre fomos muito liberais. Até tive uma tia-bisavó sufragista, você sabe. Porque o seu marido é lá dos sindicatos? Isso não tem nada a ver, acredite. Então? Ora, como é que eu hei-de dizer... Pronto, vamos direitos ao assunto. Você é inteligente e sabe o que lhe convém. Há aquele lugar de chefia há muito à sua espera. Sim. Só que, você sabe, é um cargo de confiança e precisamos que você... Não faça essa cara. Estou a falar-lhe com o coração nas mãos. Eu sei que anda aí uma lista de reivindicações a correr pela fábrica. Já viu, pois então. Está lá o seu nome. Não, não estou irritado. Percebeu, percebeu o quê? Bastava uma palavrinha sua e esse estúpido movimento acalmava. Ó mulher, não se precipite. Pense na oportunidade que lhe estamos a oferecer. Amanhã dá-me uma resposta. Chantagem? Você diz cada coisa! Dignidade, dignidade... Pronto, pronto, não se exalte. Vamos ficar por aqui. A propósito: fica a saber que o seu serviço passará a depender directamente do Dr. Guimarães. Então se já calculava, agora pode ter a certeza. E só mais uma coisa: esta conversa entre nós nunca existiu. Apre, não me fale mais em dignidade! Pode ir.

Licínia Quitério

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