31.10.07

VIDRO







Tão frágeis estes dias
de pé sobre despojos
de batalhas pensadas
no gume dos sentidos

Dormem as cores
no abrigo da boca
temerosas do vento
desejosas do lume

Horas fora da lei
do tempo dos insectos

Horas acrescentadas
ao tempo dos altares

É o tempo do vidro


O azul que escrevi no vidro diluiu-se. Não o posso repor aqui. Também a memória o recusou.

Licínia Quitério

24.10.07

AS ESTEVAS








Já vi manhãs
de acontecer ao sul
namoro de estevas
com pinheiros do norte

Bem ao norte do norte
como o poeta diria

Aquele que da alegria
nem a rima sabia
porque não era esse o seu ofício

Era da poesia o respirar

Assim as estevas pela manhã




Não me venham dizer que isto não são estevas. Hoje são estevas, namoradas de pinheiros. Também vos digo que os pinheiros não serão do norte para sempre. Só em certas manhãs, quando as estevas por eles quiserem respirar.

Licínia Quitério

16.10.07

PELE


A pele não é só palco

de noites de cetim
com ânforas de lume
a queimar a morder

Nem só traje de lua
a brilhar a bailar
em trama de feitiços
a chamar a prender

A pele é um continente
onde se cravam gritos
onde se bebe o sal
até secar as fontes
onde se lêem nomes
de rochas ainda quentes

Viam-na, à noitinha, subir os trilhos da serra. Como um grito das vestes sempre negras, uma longa écharpe vermelha de pontas franjadas. Diziam as velhas que lhe espiavam o abrir da caminhada, afastando, com as pontas dos dedos, as cortinas de renda das janelas antigas das casas antigas, que era uma jovem de pele morena, talvez uma sarracena como as dos livros de histórias que tinham lido quando jovens. Diziam os rapazes, embriagados pela dança das noites novas, quando a viam de madrugada, na descida da serpente, que a pele do seu rosto era branca, branca como o branco da lua cheia...

Licínia Quitério

9.10.07

NÃO DEVO


Não devo falar de flores
em tempos favoráveis
à dor das oliveiras

Nem das verduras fáceis
em horas amparadas
a bordões nodosos

Tão pouco do veludo
do café negro pela manhã
agora que os comboios
perderam a estação

Direi então devagarinho
do desenho das dálias
na memória dos canteiros
da palpitação das asas
da borboleta em fuga
do silvo dos comboios
rasando as oliveiras


Hoje não me apetecem histórias de letras azuis. Fica aqui somente o azul de histórias por escrever. Espero que entendam.

Licínia Quitério

2.10.07

ESTRANHEZA



Poderás encontrar-me
na hesitação das manhãs
por entre os passos da chuva miúda

É quando ergo os braços
para as altas frondes
onde deixei na véspera o coração

Não me procures na tarde
quando a minha pele é um reflexo
na estranheza das montras
anunciando o outono


As folhas secas do plátano voltaram a bater-me na janela rente ao chão. Deixaram minúsculas manchas no vidro. Desaparecem quando lhes sorrio. Depois voltam. Os habituais recados de outono... Estranho, não é?

Licínia Quitério

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