19.7.10

PARA SEMPRE


Pouco fica depois do temporal que quebrou a janela
sem dar tempo a guardar o frio sob as mantas.
A devassa da casa, insuportável, violando segredos,
desrespeitando os cofres e as gavetas e as jarras
com flores e os velhos linhos e os livros duas vezes lidos.
Depois do temporal não há bonança, não há brilhos,
há só estilhaços de silêncio nas paredes cinzentas,
nas gargantas sujeitas a uma corda impalpável.
Os rostos são iguais a outros rostos de porcelana
fina, frágil, ferida, sulcada de impropérios, vilanias.
As paredes resistem, assistem ao desmontar da cena,
que outra virá tal qual as que se foram, que tudo
se repete e tudo é novo e todo o vidro quebra
que o vento sempre volta a visitar a casa,
a resgatar o preço das palavras trocadas, frente 
a frente, em silêncio, sem pressa, para sempre. 

Licínia Quitério

NOTA: Este blog vai entrar de férias umas semanitas. Pode ser que lhe faça bem e que regresse ao vosso convívio com novos ares poéticos. Até lá, fiquem bem, Amigos.

Licínia

11.7.10

ENLOUQUECER

Que fazer deste dia a transbordar
músicas imprecisas de longínquas terras,
vozes esfarrapadas, ásperas, doridas,
dos homens que já viram tudo, que já calaram tudo
e  têm  uma navalha sobre os sonhos
e as mãos aflitas, desapossadas da forja e do metal?
Homens que levaram restos de homens pelos ares,
abriram as portas ao monstro e ao chicote,
viram o negro a rasgar-se em vermelho,
a escorrer pela savana donde os leões fugiram.
São loucos, dizem, estamos loucos, dizem.
Fizeram filhos antes de enlouquecerem
e não lhes disseram do sangue antes das flores,
das cordas, das feridas, da raiva, do medo.
Deram-lhes pão de farinhas amassadas
em águas que limparam da antiga sujidade.
Falaram-lhes de um mundo que haveria
de ter as fomes saciadas e planetas amáveis
onde seriam príncipes respeitados, beijados.
Que fazer agora deste dia em ruínas,
os fantasmas saindo dos escombros
e o desprezo dos filhos e a zanga das mulheres
e uma cruz de silêncio a apagar-lhes os gritos?
Mais logo cantarão, enlouquecidos.

Licínia Quitério

4.7.10

DO AMOR


Trazemos no olhar o tecido dos dias
que desejamos claro, com a suavidade
mate duma primeira e tão fugaz infância.
Navegamos mares, cruzamos ares,
resistimos à traição do escuro do abismo.
Esbanjamos desejo para dele sabermos.
Poupamos no amor para o termos inteiro,
sem importar o rosto ou o nome, que ele
é a mão e a voz e uma infinita paz, de pele
a pele, de vontade a vontade. A água sobre a água,
a pedra contra a pedra construindo a vereda,
um fogo brando, maior a  luz que a chama,
a iluminar um arco de passagem até ao fim do tempo.
E para lá do fim, teimosamente, a água sobre a água.

Licínia Quitério

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