28.9.10

SÓ AS ÁGUAS



Só as águas me acalmam. Águas frias
dos deuses regressados da loucura.
Nelas mergulho as mãos ao encontro
dos peixes da alegria. Com elas vão
os olhos e as imagens daqueles dias
em que o dia foi de todos. Antes
do saque da cidade. Antes dos muros.
Antes de nos venderem o medo de ter medo
e as sete chaves para fechar o coração.


As águas me darão o santo e a senha,
o novo abre-te sésamo das portas
da abundância repartida, do amor
de mão em mão, da claridade.

No hoje espero, as mãos na água,
e com elas os olhos e os pés bem firmes
na brancura das pedras que restaram.




Licínia Quitério




21.9.10

SÓ O VENTO


Foto de aguarela de MANUEL ARRUDA, por atenção da Fátima.


Não é igual o chão e os pés que o conheceram estão cansados.
As casas resistiram até à nova idade. Ruínas foram de pobreza
e galhardia. Aguentaram firmes na espera do pintor que tinha olhos
e mãos para as saber. Outro o chão outras as casas outras as vozes 
ou ainda as mesmas, de memória vazia. Alguém dirá um dia:
era uma vez uma varanda e uma escada e uma casa e decerto
pequenas as histórias da pequena miséria da casa tão pequena.
Mesmo à beira da casa esteve a árvore que tudo soube e calou
e à terra entregou o seu saber de sol e água e choros de gente
que só ela ouviu. Os pés cansados no chão já não o mesmo
sentirão, na descida tarde, um rumor de seivas, um adejar sem
asas, um tactear sem mãos. Ramagens de outro tempo.
Só o vento ficou.


Licínia Quitério

15.9.10

AS OLIVEIRAS



Nesse tempo as paredes eram todas oblíquas.
Ao razá-las as aves quebravam o limiar das asas.
Impediam os filhos de deixarem o ninho.
Nesse tempo o chão era uma onda negra,
um dorso de dragão com espinhos de cristal.
As maçãs recusavam-se a deixar as árvores
e apodreciam de medo no cansaço dos ramos.
Nesse tempo o silvo dos comboios foi destruído
pelo grito dos homens que abrasava a planície.
Foi decretada uma nova geometria e as paralelas
morreram sem se terem beijado no infinito.
Foi banido o ângulo recto  e as dores se tornaram
agudas e os sonhos obtusos até à anulação.
Foi o tempo do fogo e da avidez dos corvos
sobrevoando as cinzas. Tornou-se obrigatório 
o choro dos violinos e o latido dos cães.
Proibida para sempre a vertical da vida.
Mais tarde, muito tarde, vieram as oliveiras.

Licínia Quitério

10.9.10

SOMOS



Somos carne, somos pele, somos ossos.
Somos assombro ou  sombra, luz ou treva.
Chamam-nos gente e dizem-nos:
um homem bom, uma mulher ardente,
um zé ninguém, um estorvo, uma
Maria mais de deitar sem dormir.
Têm medo de nós se somos prumo.
Fazem troça de nós se está vazia
a gaveta do oiro.
Somos sangue e suor e sémen e saliva,
as dores da terra, a pressa dos rios, as águas do amor.
E o cansaço, esta vara atravessada de ombro a ombro,
que nos sustem o corpo e nos perfura os sonhos, o desejo.
Somos tudo, somos nada, somos ontem, somos hoje.
Podemos amanhã ser a saudade e com ela fazer
uma estátua, um poema, a rosa branca de toucar,
um beija-flor, ou apenas boca que se deixa beijar.
Somos isto. Um animal que ri e chora e luta
e desanima e se reergue e abraça o dia
de vindimar, ou de cozer o pão, ou de  acabar o livro
prestes a começar.

Licínia Quitério

1.9.10

CREPÚSCULO



Foste a minha noite, o meu ócio, o meu vício,
a argila com que moldei os cântaros da madrugada,
meu talismã contra o medo e a peste e a solidão,
a névoa luminosa dos meus olhos cerrados,
o meu canteiro de conversa e água fresca.
Hoje consulto, nos céus crepusculares, hieróglifos,
aguarelas de barcos em pedaços,
labirintos, enigmas, profecias.
O dia chegará de saber ler na nova escrita
a explicação da noite e da curva da adaga a 
desfazer as altas aves e as coisas partilhadas.

Licínia Quitério
   


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