29.2.12

NO SÍTIO DAS TORMENTAS



Alongo-me no sítio das tormentas
depois do remoinho 

nascido crescido e encorpado 
como se fosse gente e assobiasse 
ou lobo que uivasse 
à gravidez da lua
Sou um bicho solar
de olhos pregados 
na escuridão das pedras
As fúrias dormem 
Quando acordarem
limpa a memória do horror antigo
hão de dizer os homens
que tal nunca houvera acontecido
Não fora o arrepio 
também eu negaria 
a enxurrada o precipício a queda
a gula do oceano o grito
aqui onde respiro
a placidez dos ares 
como se amor viesse  
ou uma estrela nascesse


Licínia Quitério

22.2.12

DEVIA SER ASSIM


Devia ser assim. Uma árvore é uma árvore. 
Há palavras que calam os desejos da árvore. 
Mancham o verde com que dizemos árvore. 
Assustam os pássaros nos olhos da árvore. 
Mudam as vontades fermentadas na haste. 
Cansam a árvore até morrer de tédio.
Devia haver um letreiro em cada árvore, digo,
no rosto da floresta: "Silêncio. A ler o vento.".

Licínia Quitério

16.2.12

O BANCO DA AVENIDA


o que apetece mesmo e vale a pena
é sentar-me no banco da avenida
fazer com ele corpo e amizade
desdobrar um jornal da semana passada
e assim com o harmónio dos braços
reler as tardes que por ali passaram
e as outras que vieram de longe
e se enroscaram no meu colo de garça
e às vezes apertaram até que um grito
me mordia  e eu entontecida me perdia
há tanto tempo foi que já não lembro
a cor dos meus cabelos a varrer
o teu ombro da largura do mundo
ou da avenida ou do parapeito
da janela não vem isso ao caso
mas sei que é no teu ombro que descanso
quando me sento e leio as tardes
e os pombos no banco da avenida


Licínia Quitério

10.2.12

NÓS, AS MALAS



Vamos à descoberta, ao achamento,
à aventura, à procura dos mundos
infinitos que guardamos nas malas.

Como pesam as malas. Por entre
os fatos,  os livros, os sapatos,
arrumam-se, invisíveis, os segredos,
e, no regresso,  as mortes dos caminhos.
A pele das malas transporta as nossas
cicatrizes, a gala das noites de diamante,
os rótulos sucessivos dos nossos
sucessivos rostos, os nomes sobrepostos
das cidades do frio, do calor, da mansidão.
Dentro das malas se atravessa a vida.
Viajantes eternos, à descoberta, vamos.


Licínia Quitério

5.2.12

A TERRA




A terra nos acolhe os passos e a alegria.
Lonjura é o tempo, não a terra. Essa nos guarda
a história, os desacatos, o colo e a carícia.
Um dia vamos e corremos a estrada e no sítio
aprazado há um abraço e um sorriso de mãos 
largas e o cansaço desfaz-se e nem dizemos
cheguei ou estou aqui porque sempre estivemos.
Cada homem um livro por abrir  até ao dia
em que uma flor garrida dele se desprende
e, rente ao chão, no tecido do sol a possuir
a terra, começa um canto, uma oração, um
soluço, um arrastar de móveis, e uma lenda
nasce. Era uma vez... a terra inteira e nós.


Licínia Quitério


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