23.6.12

HÁ NO MAR UM LUGAR



Há  no mar um lugar que me pertence 
desde os meus tempos de alga envolta 
em espuma, nas cavernas mais fundas 
da inocência. Lugar de estrelas de alva, 
de cabeleiras de mulheres, perdidas na 
contagem das areias, de perfis de homens
buscando a rocha mãe. De luminárias
no dia antes das noites, dos lobos, 
das mortes. De castelos de vidro
na inquietação das mãos, no não saber 
da aresta viva, do golpe, do sangue. 
O lugar onde dormem as roupas velhas, 
as dúvidas, a serenidade dos meus olhos 
a acalmar tormentas.


Licínia Quitério

16.6.12

AS CIDADES


Passo a passo, pedra a pedra, casa a casa.
Desde a gruta, desde o bicho, desde a carne.
Assim se dizem as coisas. Assim se fazem as casas.
Assim se fecham as portas. Assim nos doem os dias.
Ombro a ombro, cara a cara, beijo a beijo.
Assim se fez o amor. Já não se faz o amor.
Resta a pedra sobre a pedra e a porta sempre fechada.
Cresce a erva, estala a cal, e o silêncio da ferrugem
é o sangue contra o sono. São os óxidos do tempo,
são as lágrimas viúvas, nevoeiros à desfilada
na garupa das cidades. Quase mortas as cidades.


Licínia Quitério

10.6.12

O PÓ


Há um tempo de subir as ruas, as árvores, 
as torres. Tempo de asas,  de respiros e 
suspiros, de pérolas na nuca. De desordem, 
desassossego, desapego. De corrida sem 
espora nem freio, de amor e desamor na 
mesma cama, de fome sem mesa, de mesa 
sem fome, de calor sempre. Subimos e 
tomamos rédeas invisíveis de cavalos 
brancos, de cavalos negros, de potros 
nunca amansados. É um galope sobre 
terras e águas, caminhos nesse tempo 
iguais, aprendidos nos manuais da vida 
quando aportámos ao cais do corpo,
ainda luminoso, quente. Um dia vem o 
pó e o cansaço amarra-nos os pulsos 
do desejo. Não nos reconhecemos nos 
espelhos e as palavras que dizemos não 
têm eco nas esferas. O esmorecer do 
fogo é um requiem pelo amor envelhecido 
nas escarpas violadas em silêncio, no 
avesso dos ventosno separar das águas. 
  
Licínia Quitério

2.6.12

OS SÍTIOS

Terra e mar são sítios que dizemos.
Outros há sem nome e sem morada - desertos
de onde as ervas fugiram, onde caiu a solidão
dos pássaros, o sal explodiu e o gelo não deu flor.
Há os meus próprios sítios. Ficam na distância
entre o perto e o longe, entre a corda e a amurada,
a inquietação e o sono. A casa, a rua, o largo.
Nomeio-os e sou eles, estou dentro deles.
Sou maior do que eles quando é verão e transpiro
e um lago verde me acrescenta os olhos.
Sou o frio das pedras nos dias da ruína, quando
todos os sítios empalidecem e desabam.
No sítio das mulheres estremeço e teço e parto,
com o cheiro do leite e do sangue nas costuras
da saia. Minha é a cidade onde sonho quando
os sítios escorrem de memória em memória e eu
não sei o número, a chave, a senha para os deter.
Há um sítio que dizemos céu, como dizemos
alto ou azul, em vez de nunca, em vez de morte.
É no sítio dos vivos que pensamos e, por ventura
ou condição, em desespero, amamos.

Licínia Quitério

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