24.11.13

A BELEZA


Um tecido de nuvens não é mais belo que uma folha de plátano. Tudo tem seu lugar na imaginada tela de ternuras que irrompe nas tardes friorentas de gatos ronronando na mansidão dos donos. Nada é mais belo do que a liquidez de uma estrela no charco da solidão. Bela é a audácia das libelinhas afrontando a secura. E que dizer da claridade fechada nos punhos dos que lutam quando é de breu a desventura? Mora a beleza em seus palácios de vento, mutantes, inconformes, eternamente desassossegados. Nos espelhos a vemos, intocável, serena como os dosséis do sono.


Licínia Quitério

19.11.13

HAVIA VENTO


Havia vento nesse tempo. É dele 
que me lembro a arrastar segredos 
há muito resguardados nas areias 
e nos grãos de sal amolecidos. 
Ainda a boca se recorda do sabor 
dos murmúrios nascidos no deserto, 
das vozes negras, desgrenhadas, 
perdidas dos alfabetos sobrevivos. 
Esse vento foi o mais misterioso 
de todos que por mim se anunciaram.
Acontecia, apenas, como acontece 
a morte ou a paixão. E não havia tempo 
de o pensar, de o acolher, no sono ou na vigília. 
Deixava um odor a searas maduras 
que nos punha no colo um gesto largo, 
uma açucena por detrás do olhar. 
Inadiável é um novo vento
que diga donde vem, para onde vai, 
que sopre diligente sobre o mar, a emprenhar 
os barcos de força e abundância, 
os homens de sossego e inocência.
Das Áfricas virá que dela veio a vida 
e se perdeu, ensandeceu, num vento
norte de gelo e inclemência. 

Licínia Quitério

9.11.13

NADA DEMAIS



Nada demais, amigo. 
Tudo cabe nas nossas águas. 
Um retalho de céu não é maior 
que a página do livro onde o escrevemos. 
Miragens, dizes, e eu digo torres, 
tão altas, tão fundas, tão iguais 
ao giz com que as traçámos. 
Nas nossa águas, antes da noite, 
poderão nadar todos os peixes 
nascidos dos fios 
das conversas adiadas. 
Tudo cabe, tudo vive, tudo se move, 
nos mil andares de luzes e de sombras. 
Tal como as nossas mãos, 
nada se toca, nada se magoa, 
nada fere, nada queima, nada. 
Intacta a carne e o fogo 
que em vez de a devorar a alimenta. 
Tudo acontece na outra lâmina dos nossos lagos.

Licínia Quitério  

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