30.4.14

O PODER


O poder é uma janela que se abre sem se abrir,
uma janela aberta por dentro, fechada por fora.
O mais longo tempo do poder é ocupado a
inventar janelas, depois a construí-las.
O poder tem rosto de olhos abertos sem pálpebras,
frios como os dos peixes quando dormem e não vêem.
Os olhos do poder são facilmente reconhecíveis,
chamam-se janelas, todas iguais, opacas, vidradas
como os olhos cegos, como os olhos mortos.
Por detrás de cada janela há a respiração ofegante
dos que projectam, ininterruptamente, mais janelas,
quem lhes dera sem vidros, só a aparência de vidros,
só a morte da transparência, só o triunfo da palidez.

Licínia Quitério

20.4.14

É PRECISO QUE CAIA


É preciso que caia a grande pedra, nossa cela e abrigo.
Que caia e se desfaça e dela fique uma lembrança
do que foram os dias imensos e os dias breves
em que fomos réptil que se apaga e águia que flameja.
Quando cair, do pó que acontecer há-de ficar um grão
a ser o coração duma semente. Vestidos de nudez,
caminharemos, inocentes, inermes, guiados pela claridade
das nascentes. Simples, iguais por fim aos sábios
e aos dementes, aos reis com trono e aos degredados.
Toda a hora será de nascimento e morte, indolor, indiferente,
de mágoas não sabidas, que um corpo assim, desfeita a pedra,
igual à luz e à treva, não cai, não se alimenta, não se esvai.
Vagueia eternamente e será mãe ou filho ou liberdade.

Licínia Quitério

10.4.14

À TARDE



Quando à tarde as dores se enovelam,
ao colo das mulheres é que chegam
os gatos macios, impenetráveis.
Seu pelo de segredos, seu olhar inefável.
É nas linhas da tarde que se prende
o sopro das manhãs, agora amortecido.
Por dentro das mulheres há vulcões,
terramotos, o fulgor do aço de perdidas
batalhas, e à boca acode-lhes o travo
da traição, à pele o branco do abandono.
Os gatos ameaçam os pulsos das mulheres
e elas deixam-se morder, imperturbáveis.
Na tarde acontece um fio de sangue
que elas lambem, saboreiam, contentes
por se saberem copo, corpo, fonte.

O tumulto do sangue, a doçura do sangue.
A mulher onde a tarde se implode,
no abuso dos gatos, e a aranha
a tecer no pessegueiro.

Licínia Quitério

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