17.10.22

ESQUECEREMOS

 

Não há como falar
do ódio que enlouquece
os homens
os países
o mundo conhecido
Com que palavras
havemos de lembrar
o estilhaçar das casas
e das gentes
Com que música
havemos de chorar
o silêncio
depois da queda
Que chamaremos
ao pó sobre as cidades
violadas
Esqueceremos a palavra paz
dilacerada
Esqueceremos a palavra guerra
que nos roubou a memória
para deixarmos voltar
a insanidade
E nós inermes
incapazes
nada perguntaremos

Licínia Quitério

14.10.22

MUDANÇA



Ao mesmo lugar nunca se volta.
É sempre um outro o lugar onde estivemos.
Quando o lembramos
modificamos a lembrança
como quem retoca uma pintura
tentando a perfeição que acreditamos
esteve à nossa mão.
Assim com os amigos que vão ficando longe.
Se voltam, quando voltam são já outros
tão diferentes dos que lembramos
porque os fomos mudando
criando santidade onde sabíamos
humanidade havia e mesmo essa
com toda a humana imperfeição.
Melhor é não voltar
não comparecer ao reencontro
continuar a redigir o conto
tão mentiroso
como se verdade fosse.

Licínia Quitério

4.10.22

O SUSTO


assusta
o apear das estátuas
de carne osso
como se fossem gente
assusta
o colapso das estantes
pejadas de ideias
mal pensadas
tremem as varas dos andores
e os santos assustados
desertam para a praia
como se fossem afogados
sob a metralha
o trigo já não nasce
e os corvos assustam-se
com a tremura da batalha
de susto em susto
os homens vão e falam
dos mundos indecentes
e dizem-se
pastores omnipotentes
de rebanhos trementes
inocentes
Licínia Quitério

22.9.22

IMPREVISIBILIDADE

Este não é o tempo de prever

É o tempo de ver como nunca se viu

Incerto o tempo futuro como sempre foi

Acabou-se o tempo dos adivinhos

o tempo dos profetas

Dos deuses nem se fala que perderam

os manuais de perdões e castigos

A chuva ou o tufão não se anunciam

As guerras não sabem de vitórias ou derrotas

Constante apenas o nascimento

dos filhos das mulheres, dos homens

porém sem tempo certo, sem aviso

Um pé depois do outro devagar

que o caminho não fala de chegada

e a ideia de regresso foi esquecida

É este o tempo de aprender

o tempo nosso de cada hora

o pão de todos enquanto é dia


Licínia Quitério

2.9.22

SETEMBRO

 

E vem mais um Setembro
com a memória do restolho ardido
na passagem do incêndio
na passada da guerra
Traz o olhar soturno este Setembro
como se anunciasse derrocadas
desertos
vinho azedo
dilúvios
como se fosse profeta ou adivinho
como se não soubesse
da crueldade
a assolar todos os Setembros
quando o leite das mães se faz coalho
as fontes secam
as aves esquecem a partida
Vergado este Setembro
ao peso da estiagem
o passo incerto
de quem já muito andou
e ainda arrisca
outra viagem
na busca duma flor
entre os escombros

Licínia Quitério


24.7.22

DA IGNORÂNCIA

como explicar o choro no restolho

se os humanos já ali não vivem


e o silvo a cortar os ares

a fazer-se lume e a estilhaçar a sorte

dos audazes

quem lhe deu a mão lhe segredou

o nome da distância


de perguntas andam grávidos os dias

pesados os dias

vamos pisando as respostas

há muito afundadas no chão das guerras


senhora da ignorância afasta-te de nós


Licínia Qiuitério

22.7.22

NEM OS POETAS

A decadência veloz duma era, o anúncio da mudança, a relatividade do mal, a pressa e o temor de conhecer o acto final.

Travestidos os bruxos, as sibilas, indecifráveis os oráculos.

Tempo de fogo e enxurrada a adubarem a pobreza infinitamente crescente.

A natureza e os humanos em competição, no sofrimento, na mortandade.

Nem os poetas, nem eles, se apercebem das vozes nos seus pátios interiores.

Licínia Quitério


3.7.22

CANSAÇO

 

Que sei eu do cansaço senão o que li nas pernas das mulheres

nas cordas cinzentas que lhes sobem pelas pernas

até ao peito que já foi fonte e se cansou.

Nos homens que não se cansam de plantar

para dar de comer a outros homens que tombam de cansaço

na beira dos campos, na beira dos dias.

No eterno cansaço de Sísifo, coitado,

iô-iô de deuses brincalhões

agora carrega agora sobe agora desce

e sempre e sempre sem descanso

mesmo nos quadros dos pintores famosos.

No cansaço dos poetas mais ou menos líricos

a obrigarem as palavras a dizer o que eles pensam que os outros sentem

e elas sim as palavras a ficarem cansadas e inúteis e a fugirem na primeira aragem.

No supremíssimo cansaço de Álvaro de Campos.


Licínia Quitério

29.6.22

XADREZ


Todo o mundo procurando

posição no tabuleiro.

Casa branca, casa preta,

qual das torres cai primeiro,

quantos cavalos se contam,

quem vem lá enviesado

que não deixa ver a cor.

Os infantes devorados,

alta dama vai cair.

Frente a frente,

casa branca casa negra,

senhor negro senhor branco,

e o tabuleiro a estalar,

a ruir, a regressar

à árvore de que foi feito.  

Xeque mate, xeque mate.


Licínia Quitério

26.6.22

A MAÇÃ


Entre nascer e morrer
Há sempre um fruto a amadurecer
Para poder entrar
Saboroso e fresco
Nas páginas de um livro
Que pode ser de versos
Ou de contos que se contam
Como se fossem poemas
Também eles sumarentos
Com a pele a estalar
Uma história a brotar
A procurar ser larva
Ser casulo e nele se guardar
Até ser borboleta ou então ficar
Aninhada recolhida
Silenciosa a pensar no tempo
Em que já foi maçã e já foi livro
E já foi tudo o que se possa imaginar
Que do nascer ao morrer
Muitas árvores chegam
Muitas árvores ardem
Muitas estrelas nascem Licínia Quitério

14.6.22

CHEGAM AS ROSAS



Nos sonhos da manhã
outros sonhos navegam.
Em confusão, por vezes.
Por vezes, limpidez.
Leve o desejo de ficar
por mais um tempo
ou para sempre
na morna fantasia
entre a recta e a curva
entre o sol e a sombra.
Livres do nevoeiro
nos sonhos da manhã
chegam as rosas.

Licínia Quitério

7.6.22

O UNIVERSO

Na minha mão o universo.

Sei que ele começa na semente que lancei à terra.

Expande-se o universo.

Só precisa de água para se fazer verde, aquele verde a que chamamos azul.

Na pele do universo nascem estrelas, planetas, que a minha mão afaga como se afaga o infinito.

Comovem-me a rosa, o tomate, quando me mostram a Lua, a Estrela Polar.

Um dia a minha mão perder-se-á.

O universo continuará para outras mãos onde ele sempre recomeça.


Licínia Quitério


4.6.22

VAGUEAVA

 

Vagueava pelo doirado da praia, as sandálias na mão, a baloiçar.
Afagava maternalmente um cão que corria ao seu encontro.
Baixava-se e apanhava conchas.
Devolvia-as ao mar e a boca soprava um beijo.
Acenava às gaivotas com braços de lenços brancos. Sempre sorria quando olhava o céu.
Deixava um rasto de pena nas areias.
Bailava em torno de uma pedra baça e nela acendia brilhos de fogueira.
Pisava rendas de espuma e uma poalha de estrelas salpicava-lhe a leveza da saia.
Dela não sei a cor dos olhos, dos cabelos.
Podiam mesmo não ter cor, como se diz da água.
Há quanto tempo a não vejo.
Vou perguntar ao mar se ma levou.

Licínia Quitério, 2006

30.5.22

FANTASIA


Sim
também pertenço a esta claridade matinal
suaves cortinados frescas névoas
macia a cal na fímbria dos telhados
restos de noite a deslizar nas ruas
mornas as vozes
esperança de sol na humidade das ervas
vagas promessas de árvores futuras
Manhã
se te pertenço traz-me o dia
farei dele o meu rosto
o meu vestido branco
a flor do meu papel de fantasia Licínia Quitério




11.5.22

OS OBJECTOS

 os objectos

uma vida duas vidas muitas vidas

revividos recompostos resistentes

inertes

atentos persistentes permanentes

viajantes

de parede em parede

de chão em chão

de casa em casa

provocadores

espreitadores

sabedores

guardadores

de amores de segredos de degredos

de histórias tantas quantas 

os anos as casas

as tempestades as danças

descoloridos deformados

estalados esventrados

os objectos são

a aragem

o anúncio da passagem


Licínia Quitério

14.4.22

NOVO LIVRO



Este meu novo livro será apresentado no próximo dia 23, pelas 16 horas, na


Casa de Cultura D. Pedro V

Rua José Elias Garcia, 72

MAFRA

Ali terei o prazer de vos receber para uma conversa amena com poetas e poemas.

Licínia Quitério
 

29.3.22

PALAVRAS NOVAS

 

Precisamos de palavras novas

limpas de violência e de perjúrio

Palavras breves libertas da rouquidão

encharcadas de sol e de abundância

Estamos cansados de palavras velhas

carregadas de pólvora e botox

a pesarem na surdez dos rebanhos

Havemos de fazer a festa das palavras

se elas enfim chegarem e contarem

com que sílabas calaram

a infame ladainha dos guerreiros

sobre as ruínas metodicamente construídas


Licínia Quitério

26.3.22

A GUERRA

 

Nasceu da raiva dos vulcões

da inclemência da tempestade

da secura das florestas

a guerra

alimentou-se do leite azedo das mães

do sangue arrefecido dos soldados

da desmesura dos imperadores

a guerra

cresceu para ser dona das casas

das ruas das cidades dos países

para secar os rios

para queimar os corpos

para rasgar os mapas

para apagar os nomes

a guerra

ergueu altares ao ódio

à doença à fome

à morte de inocentes

a guerra

declarou-se invencível

universal eterna

obedecida e venerada

a guerra

esqueceu-se do amor

e definhou

a guerra


Licínia Quitério

arquivo

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