8.10.21

A ESTRADA

 Na estrada longa, o nosso carro de sol e chuva  

segue a viagem de conhecer, esquecer.  

Passageiros sobem, passageiros descem.

Sinuosidades encobrem as margens

e apagam quem nelas caminhou e se perdeu.

Indelével, a memória dos vivos e dos mortos.

Revelados são os nomes dos passageiros

que continuam no carro, invisíveis,

testemunhas da inacabada solidão.

Todos os caminhos vão dar a Roma, dizia-se

quando o mundo era o tamanho da cidade.

 Neste tempo sabemos que todos os caminhos

 vão dar a uma cidade de nome Vida  e o seu contrário.



 Licínia Quitério

7.10.21

MADRUGADA

 Acordou cedo e saiu para a sua tarefa

de saber a madrugada.

A neblina esbatia os contornos das casas, das árvores,

das coisas que os humanos penduram

nos fios tensos de amarrar os dias.

Fitou o lugar donde lhe vem o medo e deteve-se,

musculada e avolumada.

Só o recorte das narinas fremia,

ao ritmo do coração.

É um ser animado,

no seu primeiro cuidado de defender a vida.

Escolheu-me para habitar com ela,

para viver como ela,

para ser ela, se quiser. 

Sendo ela, espero aprender a prezar as madrugadas.




Licínia Quitério

6.10.21

APRENDIZAGEM

 A aprender o silêncio, o murmúrio,

a fala, o grito,

a voz e a sua negação.

Tudo.

Na minha aprendizagem, a ajuda  

do pequeno visitante de corpo alado,

de penas cinzentas,

a espiar-me por entre a folhagem do salgueiro.

Sem nome, o meu espreitador,

que nome também não tem

a minha invenção

da liberdade.

Não se demora na lição do dia.

Parte desenhando no azul

a sua escolha do silêncio,

da vastidão.

A procurar  merecer o seu ensinamento.


Licínia Quitério

5.10.21

CLARO-ESCURO


 De luz e sombra cobrem-se  os dias dos homens.

Porque não têm memória de outras estrelas

afincam-se a guardar a luz do sol

nos olhos, nas mãos, no coração.

Na noite escura, quando o frio e o medo

assomam ao rés do corpo,

dizem baixinho,

meu amor minha luz,

e acende-se um raio de futuro.

No dia claro, alimentam-se de lembrança

de outras luzes

e dizem a meia voz,

meu amor meu natal.

Assim sempre, a vida clara, a vida escura.


Licínia Quitério

2.10.21

O PRINCÍPIO

 Nas manhãs de sábado podem acontecer

vulcões por dentro do silêncio.

O nosso corpo-corpo e o nosso corpo-Terra 

a construírem cenários do princípio.

Fixamo-nos no tempo

em que tudo se preparava para nos receber,

a casa já firme, o máximo e o ínfimo  ao nosso dispor.

Ainda os deuses não tinham nascido,

ainda o medo não se mostrava.

Ainda o corpo-corpo e o corpo-Terra

não se tinham separado,

a lava ainda não tinha arrefecido,

mas as lutas da água e do fogo

eram já o anúncio do eterno jogo

entre o princípio e o fim.

Os deuses aguardam que os inventem

quando o medo rugir no corpo-Terra.


Licínia Quitério


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