13.4.24

A CASA

Havia a rua, a casa, as janelas fitando-nos.

A porta sempre fechada.

A casa só existia porque as janelas nos fitavam.

A porta esperava o toque das nossas mãos.

Que não aconteceu.

Hoje digo: a casa é tão bonita.

Ela existe sem que as janelas nos fitem.

A porta entreaberta.

Sem o toque das nossas mãos.

Hoje digo: a rua era tão larga.


Licínia Quitério

28.2.24

FALAR DE ABRIL

 Falar de Abril é um trabalho grande

de lágrimas e nervos e saudades.

Falar como quem canta ou inventa

um deus tecido de alegria.

Dizer um nome novo, fazer um amor novo,

gritar e construir a fecundidade do silêncio.

Abril é um país

que engravidou de esperança e de manhã floriu.

É uma cidade

com homens a navegar na liquidez das ruas,

espingardas com mulheres à tiracolo,

sorrisos a explodir à boca dos canhões,

gritos e cantares da cor dos cravos.

Foi o dia do livro inicial

e toda a escrita foi possível.


Licínia Quitério

23.2.24

POEMA

 Sim, percebi que queres nascer. Esses toques subtis na minha mansidão, essas palavras que ressaltam nos teclados ou nos ramos das árvores, essas contracções inesperadas no meu leito de pensar, esse desassossego no parapeito da tarde, tudo isso, eu sei, é o anúncio da tua urgência de chegar ao lugar de sempre, junto aos outros que acolhi e moldei e a quem agradeci com enlevo e cansaço antes de os nomear. Serás também poema e serás o tudo e o nada de quem lê, de quem ouve, de quem se não contenta com o limiar das coisas. Eu percebo a tua pressa, o teu medo de que um dia no mundo não haja lugar para poemas ou anjos. Por agora, não te posso dizer a cor do dia de te receber. Vais aguardar, no corredor da tua espera, da minha espera, que aquela borboleta bata asas e um pólen de prata  inunde o quarto do meu segredo, do teu segredo, poema.


Licínia Quitério

18.2.24

CAMINHADA

 Avanço, paragem, retrocesso, avanço...

Assim a caminhada.

Hoje é o tempo da brutalidade, das cavernas. De novo.

Amanhã avançaremos. A montanha espera-nos. De novo.

Licínia Quitério

16.2.24

FEVEREIRO

 Vai áspera a tormenta, persistente.

Ergue-se um coro de aflições, de perdições.

Vão as dunas, vão as casas, vão as nossas certezas no sustento dos dias.

Pairam alguns afectos, alguns versos, alguns acordes incoerentes.

Ficou-nos na memória o amarelo-oiro dos narcisos que não chegaram a florir.

Sabemos que tudo eternamente se constrói e se destrói.

Sempre e nunca é uma dança que nos dói.


Licínia Quitério

13.2.24

A ESTÁTUA

 

Depois da quebra, juntar os pedaços, dar-lhes uma cor suave.

Reproduzir a estátua, num outro jardim.

Visitá-la todos os anos, afagar-lhe as fissuras.

Dizer já não, dizer ainda.

Foi duro o trabalho, longo o caminho, breve o tempo.


Licínia Quitério


5.1.24

CORES

 O poeta bebe o azul do céu

Na terra negra semeia versos

Aguarda a alvura dos lírios


LQ


CONTA-ME

 Conta-me uma história

com lobos maus raposas a voar

cegonhas sem vergonha

palavras a rimar

 

Conta

Se não contas, Mãe

com que é que eu vou sonhar


LQ

ASAS

 Tenho um verso fechado

em cada mão

São asas que teci para a viagem

Voarás, meu doido coração 


LQ

A ESPERA

 A espera é um intervalo

uma gaveta entreaberta

ansiosa pela mão

que lhe renove

o cheiro da alfazema e do limão


LQ

arquivo

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