
Numa página clandestina do álbum, um passageiro de lugares apagados perturbou a visão de Clarisse. Não podia tê-lo conhecido, tal como isso se diz de corpo e voz. Em pequena, habituara-se a vê-lo num grande quadro a óleo, oferta de amigo artista, como lhe contavam. Quantas gerações depois se apresentou Clarisse? Não pode precisar. Achara-o muito velho, quase tão velho como o Jesus crucificado na cómoda do quarto da avó. Agora o retrato diz-lhe um belo jovem com o perto e o longe no olhar. Pensa, com algum pudor, que ficaria bem ali, ao lado dela, não fora a morte a sépia que lhe deram. Houve uma bela casa, mandada construir pelo belo homem. Não a pode ter conhecido Clarisse, a não ser pelas histórias acrescentadas a um batente de bronze, em garra de leão, que hoje pisa papéis na escrivaninha antiga. Como aparecem então os peixes vermelhos no lago, por detrás do retrato? E o cão Piloto à sombra da romãzeira? E o vitral do guarda-vento e a porta giratória e as andorinhas viúvas, duas de cada lado do relógio de capela? O belo homem foi hoje o desassossego de Clarisse. Porque não o conheceu de corpo e voz, não pode nomeá-lo. A revolta do baralho de cartas e os gritos da rainha de copas são um súbito calor nas têmporas. O gato, esse, é o sorriso sobre a romãzeira. Indiferente, uma rola de peito róseo na beira do lago. O coração de Clarisse é um vaso de loiça fina cansado da corrida. Foram anos, foram séculos, foi o dia de ontem.
Fecha o sétimo álbum. O verde dos seus olhos amainou. É assim Clarisse, devoradora de passados.
Licínia Quitério