31.5.17

INTERLÚDIO


Um trevo de quatro folhas,
um raminho de hortelã,
uma plumagem de espargo,
florinhas da cor da neve.
Um raminho leve, leve,
tão pequenino a caber
na palma da minha mão.
Uma jarra transparente
com a água que alimente
do verde a fome e a sede.
Pequenos gestos os meus
a acarinhar, a compor,
desenhos que sei de cor.
Se tudo assim sempre fosse,
um tempo suave e doce
com o odor da ternura,
sem o rasto da amargura,
se tudo fosse e eu soubesse...


Licínia Quitério

29.5.17

A PENUMBRA


São os dias da penumbra.
A luz escorrente nas vidraças,
um fio de memória
a desenhar as asas
da pomba da infância,
e com a pomba a mãe,
o olhar da mãe
a segurar o traço,
e o candeeiro.
Sim, havia um candeeiro
que se quebrou
na escassez da casa.
Foi quando a rua entrou
na história, 
muito depois da pomba,
muito depois da mãe.
A rua de Hopper
da cidade silenciosa,
uma mulher à janela
com um vestido vermelho,
um carro parado,
as chaminés sem fumo.
No céu um candeeiro
que o pintor não viu.
A pomba o levou no bico
e o suspendeu.
Tudo é possível nos dias
da penumbra
se uma mulher vestida
de vermelho
pensa na infância
e a desenha.

Licínia Quitério

28.5.17

GRAÇA PIRES


A ruiva

Soltaram-se os pássaros vermelhos,
colados em meus cabelos.
Roçaram a sombra dos navios
e voaram, em círculos fechados,
rasando os areais.

Como um esboço de naufrágio
no rosto dos homens
que afagam sempre os filhos
como se fosse a última vez.
Como se, no coração das areias, os ventos
se enrolassem nas dunas em rituais de paixão.

Regressaram depois, os pássaros vermelhos.
E, lentamente, desalinharam os meus silêncios.

GRAÇA PIRES, em "Fui quase todas as mulheres de Modigliani", Poética Edições


foto da net

25.5.17

A FLORESTA


Naquele tempo, as árvores pediam os meus cabelos.

Eu era alta, da altura da grande mocidade que me vivia, e as árvores tinham ramos que se curvavam para mim, e isso acontecia em todas as estações, ou então, nesse tempo eu era o Verão e só sabia de flores e de frutos e mal tinha percebido a canção das seivas tronco acima, tronco abaixo.

Se não tivesse acontecido a loucura desse Verão, eu não seria hoje capaz de me sentar à sombra, olhar o alto, dizer ár-vo-re como quem embala um amor antigo, demorar-me na vibração das asas de uma borboleta. 

Por vezes penso no dia em que também serei árvore e tocarei sorrateira os cabelos da rapariga que caminha apressada, na sua aprendizagem de contar amores e perdições.

Enquanto espero, penso no nome a dar à floresta.


Licínia Quitério

19.5.17

O INCÊNDIO


À tardinha acontecem os incêndios
e os meus olhos ajoelham
porque a casa do céu se transmutou
em oiro.
Eu penso árvores alquímicas,
ecos de vozes altíssimas,
astros vizinhos do meu assustado coração.
Nada pode calar tanta beleza,
e no entanto há homens
que ao arrepio da luz
se fazem sombras
e são estéreis
são países mortos
são comandantes do medo.
Sabem que cegarão
quando olharem o céu
no incêndio da tarde.
Esperam a água da noite
que talvez não venha
talvez 

Licínia Quitério

13.5.17

O ESQUECIMENTO


Cedo ou tarde
em hora quente ou fria
encontrarás a porta 
aberta nos teus passos
peregrinos sem santo
nem sossego
Passos já não leves
não velozes
quem sabe apenas
a memória dos passos
em caminhos de sol
em veredas de lua
em becos de paixões
sinuosas e breves
Esqueceste tantos nomes
tantos rostos
mas aprendeste
a vastidão da praia
a cor do mar
as casas vazias
os laços rotos
uma música branca
uma franja de sombra
um piar de pássaro perdido
a procurar-te as mãos
É a hora de enfrentares o arco
e seres a flecha
de seres a pedra e o musgo
e o estalido da areia
ao peso do teu corpo
Sozinho vais
Ninguém pode fazer a tua estrada

Licínia Quitério

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