31.12.18

SE EU FOSSE


Se eu fosse lago
dizia-te dos peixes
que são ondulação e escama
e não fecham os olhos
nem na morte

Se eu fosse pedra
contava-te o desejo
de ser a curva do bambu
no abraço do vento
na sedução da água

Se eu fosse um ramo de salgueiro
ensinava-te o choro do corpo
no ardor da viagem

Se eu fosse o ar
dava-te a voz 

e o silêncio 
e as asas da partida

Licínia Quitério

22.12.18

PAZ

.

É minha a paz das mãos que alimentam 
dessedentam curam afagam 
afastam do precipício 
ajudam na subida iluminam,
a paz dos olhos atentos 
olhos-guia olhos-companhia 
olhos-livro de memória,
a das bocas falantes sussurrantes 
bocas-corola bocas-enseada 
bocas-silêncio-e-música.
Dos corpos nada digo.
Deles me esqueço me ausento 
corpo-apenas-onda-apenas-prado.
Há uma paz só minha: 
a dos telhados brancos onde um anjo se alonga.

Licínia Quitério

11.12.18

UMA ROSA




Uma rosa é uma rosa

A rosa nasce
onde a dor se apresenta
se afinca a morder a roer
a rasgar o tecido
a amarelar o sangue
a corromper o nervo
No coração da ferida
nasce a rosa
É um sorriso no matagal
uma maçã no escombro
Nasce de noite
sobre a erva má
Quando amanhece
e o corpo aquece
a rosa cresce
a rosa dança
ao derredor da chaga
e a perfuma
e a enlaça
e o corpo esquece
a fundura do poço
o tremor o fervor
da pele até ao osso
Ora sim ora não
o corpo avança
Rosa rosae
é uma declinação
é uma oração
a desviar a lança

Licínia Quitério

6.12.18

AS ESPERAS


É a hora de preparar o deserto para a noite longa, 
de falar baixo ou calar, 
de recolher as roupas, 
de desligar os motores, 
de convocar o silêncio do peito, 
de procurar sentido para as mãos, 
de juntar palavras de dia com palavras de noite
e escrever a louca saudade da maré alta, 
dos pinheiros altos, 
da janela alta das esperas.

Licínia Quitério

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