27.9.19

POENTE


Mar e céu entendem-se, confundem-se,
incendeiam-se.
Há um barco parado ou a sombra dele.
Em contra-luz, em frente à luz, a casa espera.
Doem-lhe as traves nos gritos das gaivotas.
De oiro e de sangue as palavras perdidas
nos cais de anoitecer.
Salgados os olhos das mulheres.
Escurece.

Licínia Quitério

25.9.19

AUSÊNCIA





Difícil titular o que não é
senão a leveza do fumo a custo percebido.
A macieza numa mão fechada,
o esboço de sorriso, só o esboço,
a promessa de abraço que não passou
de um parêntesis recto em demasia,
o beijo numa pressa a descolar da pista,
o banco da reforma com a tinta a estalar e
um abutre, ou um anjo, lá no alto
a espreitar.
O táxi que nos pega nas horas de dormir
e, no fim da corrida, um deus branco a acenar.
O café, a morfina do social correcto,
com cheiro a roças e a negros de cetim.
A mulher que lamenta não ser capaz de rir ou
o louco em gargalhadas com vidros no olhar.
O falar por falar -
rosário de palavras ou contas por contar.
A ausência, pois, a ausência.

Licínia Quitério, em Da Memória dos Sentidos

23.9.19

OUTONO


Chegou de mansinho. Era um gatinho
amarelo de veludo antigo, a cauda em esse
a roçar as ervas distraidamente. A janela
aberta disse-lhe bom-dia, estás de volta,
amigo. Ele respondeu com um sorriso
humano de mistério. Souberam as aves
que à palavra chegada haviam de partir
e desdobraram asas. As mulheres
de viagens, os homens de viagens, leram
novidade nos ares e persignaram-se.
Uma criança chorou com um pequenino
medo a atravessar as lágrimas. Um velho
arriscou, serás o último. O gatinho amarelo
mirou as folhas do plátano na beira
do caminho. Disse, o meu trabalho começou.
Alguém em voz macia pronunciou o seu nome
e o escreveu na areia húmida da praia.

Licínia Quitério

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