30.11.18

A AUSÊNCIA


É preciso partir. 
Amarrar viagens ao bordão de saudades 
que bem cedo florescem.
Fechar as asas da insânia

a pairar sobre os leitos.
Nas mesas espalhar o mel 
para que voltem as abelhas.
Visitar as aldeias da infância 
que tão mal conhecemos. 
Nunca retroceder, antes correr
ao encontro das vozes dos ausentes.
Fugir dos precipícios que sorriem,
dos cães danados,
do voo das harpias,
da boca de lava dos tiranos.
Decifrar a escrita do vento
nos livros das florestas.
Nunca dormir antes do ocaso.
Nunca dormir depois do ocaso.
A viagem não se faz de noite nem de dia.
A viagem navega em nossas veias
onde não há luz nem escuridão.
Quando partimos começamos
a construir a nossa ausência.
Também se pode dizer a eternidade.

Licínia Quitério

21.11.18

UM PAÍS



Há um país onde tudo arde
menos a boca das mulheres
onde a água se demora
e os olhos dos homens
onde a água escorre
É um país onde tudo seca
e treme
e desmorona
Só a água se demora na boca das mulheres
à espera de ser leite
e ser criança
Só dos olhos dos homens escorre a água
que vai ser lago
e afogar a cinza
Há um país à beira do abismo
Há uma mulher a contar as ovelhas
Há um homem a juntar as sementes
Nenhum deles quer saber o nome do país


Licínia Quitério

6.11.18

OS PEIXES



Contra o tempo nascidos
a terra os cria,
a guerra os mata, a guerra
a fome os mata, a fome
o medo os mata, o medo

Eis os sobrevivos, os andantes
os foragidos da tragédia
os do sangue fervente
por beberem as dunas
como se fossem água
por comerem as pedras
como se frutos fossem

Sonham com barcos
por não haver cavalos no deserto

O mar os chama
o mar os leva
o mar os traga

Alcançarão a frieza dos peixes
o seu bailado
a sua morte breve
líquida

Licínia Quitério

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