26.7.24

A VOZ

 No cofre, no silo, na garganta

Junto ao ouro, à corda,  ao grão

Desde a mina, o campo, o sangue

Depois da dor, do golpe, do ciúme

Antes  do brilho, do tremor, do vibrato

Em tudo e nada e nunca e sempre

Aquela voz acontece

E diz o nome, a data, a rua

E a certeza do silêncio

Tudo o que nos deixa é a lembrança

De um tempo ameno

De um lugar seguro

De um som inominável

Se a voz  aconteceu  há de voltar


Licínia Quitério

 

 

6.7.24

DA VOZ

 Do nome a vogal dominante

nada mais

Do rosto o contorno

interrompido aqui e ali

como se sombra de gigante o procurasse

Do corpo o vulto em movimento

que pouco importa para a vida do retrato

Ficou a voz macia e clara

aquém do esquecimento

dizendo chamando

em permanência vogando

procurando o eco



Licínia Quitério

 

2.7.24

CRESCER

 

Crescer

é o que faz a semente

a prometer o gérmen

que há de crescer até ser corpo

ansioso por crescer

e lhe chamarem vegetal em água ou terra firme

ou animal em água ou terra firme

quem sabe será árvore

quem sabe será gente

quem for trará consigo a marca

o signo o som a luz e tudo o mais

que fez crescer a semente

até ser animal

até ser gente

até voltar a ser a terra a água

ou a bola de cristal duma qualquer vidente


Licínia Quitério

27.6.24

CONVITE

 


A ESTRADA

 Se fosse assim

gostoso como beijo

de amor maior que a estrada

inda que pedregosa a estrada

mas orgulhosa a estrada

das ervas a espiarem os passantes

apressados os passantes

absortos os passantes

ansiosos do fim

que só verão depois da curva

apertada a curva

mal desenhada a curva.

Se fosse assim gostoso

o caminhar de sombra em sombra

o beijo ainda acima da vontade

de o lembrar

antes de ter nascido

depois de ter nascido

igualzinho ao que foi

sem nunca ter nascido.

Será assim depois da curva

por entre a sombra

a estrada

ainda a estrada.


Licínia Quitério

 

7.6.24

ILUDIR

 A iludir o tempo

o homem de passagem

na areia escreve

dá a volta ao mundo

numa mão fechada

é grande e nada tem

Ano vai ano vem


Licínia Quitério 

UM POEMA

 Um poema modesto

De palavras pequenas

Esdrúxula nenhuma

As tónicas assim

Macias quanto baste

A fazerem-se ouvir

Sem nunca magoar

Os ouvidos atentos

De música sedentos

Um poema amável

A convidar sossego

A caminhar connosco

Devagar devagar

Um poema menino

Um poema adulto

Com a idade do homem

A  vibração do sol

O silêncio da lua

Um poema a esconder

Entre panos de linho

Num colo de mulher

Tão pequeno o poema

Tão tímido o poema

À espera de nascer

 Licínia Quitério

4.6.24

CANSADAS DE GUERRA

 As mulheres estão cansadas.

Já não carregam os filhos

já não acartam comida

já não suportam o cio dos homens.

A guerra deu-lhes o cansaço

matou-lhes os filhos

queimou-lhes a comida

levou-lhes os homens.

A guerra ensinou-as a caminhar para sítio nenhum

a beber as lágrimas onde a água não chegou.

Estão tão cansadas as mulheres.

Esquecido o ritmo das danças

movem-se comandadas pelos ossos

pelo som das fúrias.

Abrasadas pelo incêndio do céu

aos poucos vão esquecendo o próprio nome.

Guardarão o nome duma terra

onde sepultaram os filhos os homens

um ou outro animal.

Estão cansadas.

Caminham em círculos

às vezes tropeçam

às vezes ajoelham

em silêncio.

A guerra levou-lhes a fala

e as orações são inúteis

na terra esquecida dos deuses.

São mulheres cansadas de guerra.


Licínia Quitério

26.5.24

O VERBO

 Este verbo dar com o reflexivo se

tudo inverte tudo torna e transtorna

e pode destruir o sujeito que dá

pois de tanto querer acrescentar

se encurtou diminuiu

e pouco ou nada de si restou.

O verbo lá ficou no seu modo infinito

a pairar a esperar a mão que colhe

o coração que aperta.

A rua está deserta e o verbo não conjuga

por se ter enganado no tempo do sujeito.


Licínia Quitério

25.5.24

SONETO 2

 Muitas vezes crianças somos todos.

Meninos cor-de-rosa a tatear,
Caindo dos adultos nos engodos,
Quebrando-lhes as fúrias a palrar.

Traquinas, transgredindo por prazer,
Tiranos, construindo a própria lei,
Brinquedos num segundo a desfazer,
Altivos, afirmando: eu é que sei.

Menino tal e qual te descobri,
Batendo o pé no chão, berrando à toa.
No mesmo instante foi que decidi

Usar o véu de amor que envolve e coa
O denso caldo de alma imerso em ti
E fazer triunfar a seiva boa.

Licínia Quitério

SONETO

 Era quase de noite quase dia

era tarde e era cedo para chegar.
Em nós o vendaval e a calmaria
à nossa frente glorioso o mar

a provocar desejos de aventura.
Partir à descoberta de outras ilhas
num veleiro carregado de ternura
desvendar tesouros e maravilhas.

Era quase de noite e não chegámos
à terra prometida ao fruto apetecido
mas nas pedras do cais onde aportámos

havia gente de coração erguido
a aguardar a esperança que levámos
de um homem novo das trevas renascido.

Licínia Quitério

1.5.24

LUGARES

 Lugares como pele por inteiro

Não importa quando foi por que foi
Estivemos respiramos fundo
Sentimos uma aragem penetrar-nos
Qualquer coisa de animal
Qualquer coisa de amante
Sem nos apercebermos o lugar possuiu-nos
Não não nos prendeu libertou-nos
Qual animal estimado
Amante generoso
Não pediu licença fez-se ao caminho
Sua pele nossa pele
Connosco veio e ficou
Para que dele falemos
No passado presente
Como de amor falamos
Eu fui eu tive
Um lugar que sou eu

13.4.24

A CASA

Havia a rua, a casa, as janelas fitando-nos.

A porta sempre fechada.

A casa só existia porque as janelas nos fitavam.

A porta esperava o toque das nossas mãos.

Que não aconteceu.

Hoje digo: a casa é tão bonita.

Ela existe sem que as janelas nos fitem.

A porta entreaberta.

Sem o toque das nossas mãos.

Hoje digo: a rua era tão larga.


Licínia Quitério

28.2.24

FALAR DE ABRIL

 Falar de Abril é um trabalho grande

de lágrimas e nervos e saudades.

Falar como quem canta ou inventa

um deus tecido de alegria.

Dizer um nome novo, fazer um amor novo,

gritar e construir a fecundidade do silêncio.

Abril é um país

que engravidou de esperança e de manhã floriu.

É uma cidade

com homens a navegar na liquidez das ruas,

espingardas com mulheres à tiracolo,

sorrisos a explodir à boca dos canhões,

gritos e cantares da cor dos cravos.

Foi o dia do livro inicial

e toda a escrita foi possível.


Licínia Quitério

23.2.24

POEMA

 Sim, percebi que queres nascer. Esses toques subtis na minha mansidão, essas palavras que ressaltam nos teclados ou nos ramos das árvores, essas contracções inesperadas no meu leito de pensar, esse desassossego no parapeito da tarde, tudo isso, eu sei, é o anúncio da tua urgência de chegar ao lugar de sempre, junto aos outros que acolhi e moldei e a quem agradeci com enlevo e cansaço antes de os nomear. Serás também poema e serás o tudo e o nada de quem lê, de quem ouve, de quem se não contenta com o limiar das coisas. Eu percebo a tua pressa, o teu medo de que um dia no mundo não haja lugar para poemas ou anjos. Por agora, não te posso dizer a cor do dia de te receber. Vais aguardar, no corredor da tua espera, da minha espera, que aquela borboleta bata asas e um pólen de prata  inunde o quarto do meu segredo, do teu segredo, poema.


Licínia Quitério

18.2.24

CAMINHADA

 Avanço, paragem, retrocesso, avanço...

Assim a caminhada.

Hoje é o tempo da brutalidade, das cavernas. De novo.

Amanhã avançaremos. A montanha espera-nos. De novo.

Licínia Quitério

16.2.24

FEVEREIRO

 Vai áspera a tormenta, persistente.

Ergue-se um coro de aflições, de perdições.

Vão as dunas, vão as casas, vão as nossas certezas no sustento dos dias.

Pairam alguns afectos, alguns versos, alguns acordes incoerentes.

Ficou-nos na memória o amarelo-oiro dos narcisos que não chegaram a florir.

Sabemos que tudo eternamente se constrói e se destrói.

Sempre e nunca é uma dança que nos dói.


Licínia Quitério

13.2.24

A ESTÁTUA

 

Depois da quebra, juntar os pedaços, dar-lhes uma cor suave.

Reproduzir a estátua, num outro jardim.

Visitá-la todos os anos, afagar-lhe as fissuras.

Dizer já não, dizer ainda.

Foi duro o trabalho, longo o caminho, breve o tempo.


Licínia Quitério


5.1.24

CORES

 O poeta bebe o azul do céu

Na terra negra semeia versos

Aguarda a alvura dos lírios


LQ


CONTA-ME

 Conta-me uma história

com lobos maus raposas a voar

cegonhas sem vergonha

palavras a rimar

 

Conta

Se não contas, Mãe

com que é que eu vou sonhar


LQ

ASAS

 Tenho um verso fechado

em cada mão

São asas que teci para a viagem

Voarás, meu doido coração 


LQ

A ESPERA

 A espera é um intervalo

uma gaveta entreaberta

ansiosa pela mão

que lhe renove

o cheiro da alfazema e do limão


LQ

6.10.23

SÃO ROSAS

São rosas, senhor, meu bem.


Serão pão, serão poema 
Que diga o que eu não souber 
Da vida que me couber. 
Flor de sol, fruto de chão, 
Rosa verde, rosa plena, 
Rosa nova inda em botão. 
Se eu quiser rosas serão.
 
Meu bem, senhor, são amor.

Licínia Quitério

5.9.23

CHEGAM DE MADRUGADA

 

Chegam de madrugada

São o eco de divagações nocturnas

Vão contando o princípio de histórias

Que desejámos e esquecemos

Trazem as vozes brandas

Os gestos inacabados

Mulheres e homens

Que deixámos

Que nos deixaram

Agora sombras que sem saber invocamos

No suave despertar vão-se esbatendo

Confundindo tempos

Deformando -se

Transformando-se

Ausentando-se

A luz do dia tudo apaga

As sombras guardam

Num desvão secreto

Essa outra vida não vivida

Verdadeira como todos os sonhos


Licínia Quitério

 

 

5.7.23

OS ARCHOTES

 

os homens já não transportam archotes

são os archotes

já não lançam bombas

são as bombas

correm pelas cidades

uivam

acendem os olhos

incendeiam

as casas as ruas

outros homens sem chama

a matilha chegou às portas da cidade

deteve-se

aguarda o tempo de cinza

que virá depois da raiva

esse fogo crescido nas goelas

dos esfomeados

ardem bem as cidades

Licínia Quitério

12.4.23

CONVITE

 


27.3.23

A DECADÊNCIA

 A decadência veloz duma era, o anúncio da mudança, a relatividade do mal, a pressa e o temor de conhecer o acto final.

Travestidos os bruxos, as sibilas, indecifráveis os oráculos.

Tempo de fogo e enxurrada a adubarem a pobreza infinitamente crescente.

A natureza e os humanos em competição, no sofrimento, na mortandade.

Nem os poetas, nem eles, se apercebem das vozes nos seus pátios interiores.


Licínia Quitério

22.3.23

PÁSSAROS

 

Tens um pássaro moribundo aos pés

e não lhe tocas

Esperas que ele morra

para depois o ergueres

A tua mão não treme

Dizes: pobre ser indefeso

Os teus olhos estão secos

do pó do tempo que passou

O chão da guerra está juncado

de pássaros mortos

Dizes: pobres seres indefesos

Ficam aguados os teus olhos

com a lembrança dos rios que passaram

Os pássaros lá ficam

até serem cinza água

remorso de todos nós

pássaros indefesos


Licínia Quitério

10.3.23

 Janeiro 2005


Uma a uma foram-se as portas fechando de mansinho.
Não sei de quem a mão a convidar o vento,
a convocar o escuro, a apagar com esmero
todo o traço de beijo.
Não sei de quem a voz que foi dizendo não
a qualquer tentativa de passagem
para a margem do rio onde os cavalos
brancos se apaixonam,
naturalmente, pelas borboletas.
Não sei de quem a força que não me deixa descolar da estrada,
ganhar a asa e, ao menos, debater-me acima desta bruma.

Que brilho é este a faiscar cá no fundo de mim?

Sei.
Foi uma estrela que há muito se apagou e,
sem avisar, me fez herdeira universal
de seu átomo, seu filho intemporal,
e me ensinou a reabrir as portas,
a avivar os traços,
a ganhar a terra dos cavalos brancos,
das borboletas.

LQ, inédito

6.2.23

VEM

 Vem sereníssima

moradora

nas alturas dos sonhadores

nas profundezas dos tombados

nos mares dos fugitivos

nas celas dos cativos

 

Vem suavíssima

sabedora

da aflição dos desesperados

da nudez dos desprezados

do desespero dos perdedores

da decepção dos ganhadores

 

Vem humaníssima

amante

do silêncio nocturno

do estrépito diurno

 

Vem poderosíssima

dona

dos segredos inconfessados

da contradição dos espíritos

dos medos da paz e da guerra

dos medos da fome e da abundância

 ser deusa

ser amor

explicar a solidão de todos nós


Licínia Quitério

19.1.23

 A EUGÉNIO DE ANDRADE


Com que palavras se diz

a morte de um poeta?

Tu as disseste como quem lavra

o branco com a cal.

As disseste como quem ama o amor

em nuvens altas.

Disseste corpo, ou rio, ou ave,

como quem canta uma canção

e dela se desprende.

Com Eros te entendeste e

maduraste os frutos.

Portuguesmente foste

a casa, as dunas, o areal

e o amigo que partiu.

Disseste o som, o cheiro, a cor

e nos deste a conhecer

a palpitação, a onda do silêncio.

Thanatos te buscou,

te reclamou e contigo levou

as palavras sobrantes

para que nunca se diga

que o poeta partiu, mas que habita

em segredo, o adro, a eira, a mãe.


Licínia Quitério


17.10.22

ESQUECEREMOS

 

Não há como falar
do ódio que enlouquece
os homens
os países
o mundo conhecido
Com que palavras
havemos de lembrar
o estilhaçar das casas
e das gentes
Com que música
havemos de chorar
o silêncio
depois da queda
Que chamaremos
ao pó sobre as cidades
violadas
Esqueceremos a palavra paz
dilacerada
Esqueceremos a palavra guerra
que nos roubou a memória
para deixarmos voltar
a insanidade
E nós inermes
incapazes
nada perguntaremos

Licínia Quitério

arquivo

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