6.10.23

SÃO ROSAS

São rosas, senhor, meu bem.


Serão pão, serão poema 
Que diga o que eu não souber 
Da vida que me couber. 
Flor de sol, fruto de chão, 
Rosa verde, rosa plena, 
Rosa nova inda em botão. 
Se eu quiser rosas serão.
 
Meu bem, senhor, são amor.

Licínia Quitério

5.9.23

CHEGAM DE MADRUGADA

 

Chegam de madrugada

São o eco de divagações nocturnas

Vão contando o princípio de histórias

Que desejámos e esquecemos

Trazem as vozes brandas

Os gestos inacabados

Mulheres e homens

Que deixámos

Que nos deixaram

Agora sombras que sem saber invocamos

No suave despertar vão-se esbatendo

Confundindo tempos

Deformando -se

Transformando-se

Ausentando-se

A luz do dia tudo apaga

As sombras guardam

Num desvão secreto

Essa outra vida não vivida

Verdadeira como todos os sonhos


Licínia Quitério

 

 

5.7.23

OS ARCHOTES

 

os homens já não transportam archotes

são os archotes

já não lançam bombas

são as bombas

correm pelas cidades

uivam

acendem os olhos

incendeiam

as casas as ruas

outros homens sem chama

a matilha chegou às portas da cidade

deteve-se

aguarda o tempo de cinza

que virá depois da raiva

esse fogo crescido nas goelas

dos esfomeados

ardem bem as cidades

Licínia Quitério

12.4.23

CONVITE

 


27.3.23

A DECADÊNCIA

 A decadência veloz duma era, o anúncio da mudança, a relatividade do mal, a pressa e o temor de conhecer o acto final.

Travestidos os bruxos, as sibilas, indecifráveis os oráculos.

Tempo de fogo e enxurrada a adubarem a pobreza infinitamente crescente.

A natureza e os humanos em competição, no sofrimento, na mortandade.

Nem os poetas, nem eles, se apercebem das vozes nos seus pátios interiores.


Licínia Quitério

22.3.23

PÁSSAROS

 

Tens um pássaro moribundo aos pés

e não lhe tocas

Esperas que ele morra

para depois o ergueres

A tua mão não treme

Dizes: pobre ser indefeso

Os teus olhos estão secos

do pó do tempo que passou

O chão da guerra está juncado

de pássaros mortos

Dizes: pobres seres indefesos

Ficam aguados os teus olhos

com a lembrança dos rios que passaram

Os pássaros lá ficam

até serem cinza água

remorso de todos nós

pássaros indefesos


Licínia Quitério

10.3.23

 Janeiro 2005


Uma a uma foram-se as portas fechando de mansinho.
Não sei de quem a mão a convidar o vento,
a convocar o escuro, a apagar com esmero
todo o traço de beijo.
Não sei de quem a voz que foi dizendo não
a qualquer tentativa de passagem
para a margem do rio onde os cavalos
brancos se apaixonam,
naturalmente, pelas borboletas.
Não sei de quem a força que não me deixa descolar da estrada,
ganhar a asa e, ao menos, debater-me acima desta bruma.

Que brilho é este a faiscar cá no fundo de mim?

Sei.
Foi uma estrela que há muito se apagou e,
sem avisar, me fez herdeira universal
de seu átomo, seu filho intemporal,
e me ensinou a reabrir as portas,
a avivar os traços,
a ganhar a terra dos cavalos brancos,
das borboletas.

LQ, inédito

6.2.23

VEM

 Vem sereníssima

moradora

nas alturas dos sonhadores

nas profundezas dos tombados

nos mares dos fugitivos

nas celas dos cativos

 

Vem suavíssima

sabedora

da aflição dos desesperados

da nudez dos desprezados

do desespero dos perdedores

da decepção dos ganhadores

 

Vem humaníssima

amante

do silêncio nocturno

do estrépito diurno

 

Vem poderosíssima

dona

dos segredos inconfessados

da contradição dos espíritos

dos medos da paz e da guerra

dos medos da fome e da abundância

 ser deusa

ser amor

explicar a solidão de todos nós


Licínia Quitério

19.1.23

 A EUGÉNIO DE ANDRADE


Com que palavras se diz

a morte de um poeta?

Tu as disseste como quem lavra

o branco com a cal.

As disseste como quem ama o amor

em nuvens altas.

Disseste corpo, ou rio, ou ave,

como quem canta uma canção

e dela se desprende.

Com Eros te entendeste e

maduraste os frutos.

Portuguesmente foste

a casa, as dunas, o areal

e o amigo que partiu.

Disseste o som, o cheiro, a cor

e nos deste a conhecer

a palpitação, a onda do silêncio.

Thanatos te buscou,

te reclamou e contigo levou

as palavras sobrantes

para que nunca se diga

que o poeta partiu, mas que habita

em segredo, o adro, a eira, a mãe.


Licínia Quitério


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