17. Foram os anos insidiosos nas páginas do álbum de lombada doirada. Entraram, um a um, pelas pequeninas frestas entre as folhas, e ajustaram contas com as cores. Como um vento desatinado que tivesse mudado as coisas, os lugares, as gentes, dando-lhes outros poisos, outros tons, outros tempos. Uma peça de teatro com um encenador enlouquecido que da tragédia fez comédia e deu grandeza ao vilão e sonho ao imbecil. É por isso que Clarisse não consegue lembrar-se em que céu aconteceu o voo triunfante do pássaro branco de peito negro. Talvez no céu azul da terra quente em que se deitava de costas no pino do verão. Afundava os pés na areia de oiro, as pernas dobradas pelo joelho, e cavava pequenas crateras circulares, com as mãos espalmadas, até que o chão as cobrisse até aos pulsos. Clarisse gostava de se pensar planta a enraizar terra dentro, firme, muito firme, tranquila na imobilidade vegetal que desejava. Poderia bem ser a terra das casas baixinhas e azuis, agora mais azuis, esquecidas da brancura dos dias felizes. Encurvados os telhados, encurvados os dias de Clarisse, intacta apenas a curva do olhar. No ano que chegar, Clarisse há-de com ele encetar desafios na busca de retratos que o vento não tenha violado. Assim permaneça na beira do tanque, à tardinha, a rola de peito róseo a que falta uma asa.
Licínia Quitério