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Um tempo houve em que as paredes não existiam.Só as árvores nomeávamos.Penso paredes e sinto-me cansada. Escrevo árvores como se as tivesse inventado.Pinto árvores nas paredes para as poder saltar.De súbito, do outro lado, um chicote de gritos:Devoraram as árvores!!Tenho pena.Já não ouso escrever palavrascomo estrelas, ou montanhas, ou liberdade,nem pintar árvores para depois trepar.Pode sempre haver, no avesso das paredes,quem se divirta a devorá-las,talvez porque afinal eu as tivesse inventado...Assim, a partir de hoje,apenas pensarei, sensatamente,paredes,altivas como montanhas a namorar estrelas,macias e frementes como jovens árvores,leves e saudáveis como o sabor da liberdade.Até deixar de me cansar.
In "Da Memória dos Sentidos"
O meu Pai dizia: O medo não existe. E eu avançava pelo quarto escuro, devagar,os olhos muito abertos, a afastar as sombras dos ramos da nogueira. Mãos de lobo a tentarem agarrar os meus brinquedos. O medo não existe. E eu dava mais um passo,já muito perto da boneca que me chamava (eu ouvia) no tampo da mesinha à cabeceira. Finalmente tocava-a e de pronto a agarrava. Retrocedia, com passos estugados, em direcção à luz por momentos roubada. O coração batia e uma alegria nova me invadia. O meu Pai sabia tudo. O medo não existe.
Ainda hoje não tenho relutância em entrar no quarto escuro onde não há boneca nem sombras da nogueira. Apenas eu com o medo futuro.
Licínia Quitério
Que guardam as florestas pela noite?Duendes, adivinhos, virgens loucas.Repousos animais, leves respirações.Olhares que só no escurose perdem da cegueira.Molezas e frescuras vegetais.Trabalhos lentos, exactos,de operários incansáveis.Cumprida a noite, as florestas
preparam as vestes matinais.Com os cuidados de mulheres antigas, com véus de névoa encobrem a nudez.E, quando o novo dia as visitar,estarão serenas, hirtas,cobertas dos seus verdes radicais.Duendes, adivinhos, virgens loucassão agora invisíveis, impalpáveis.Tornam-se seivas, agulhas, frutos altos.Obedecem ao vento. São reais.
Um ar frio e húmido fazia-nos sentir os ossos. Passámos rente à floresta. Só rente, que para lá entrar faltou coragem. Uma luz tímida roçava as copas. Daí a pouco diríamos: Chegou o sol. Um bater de asas ergueu um grande pássaro. Vimo-lo poisar, por entre o nevoeiro, no que seria um ramo ou uma diagonal do quadro. Depois de nos aproximarmos, chamámos-lhe corvo. Negro a diluir-se na tinta acinzentada da manhã. Lá ficou. Parecia imóvel. Em mim se deu um estremecimento. Vi nele a sombra de um companheiro de outras viagens. Miragem de outras florestas que não de enganos. Foi decerto aquele ar frio da madrugada. A afastar lembranças, disse: Com um café quente isto passa.
Licínia Quitério
O homem bebe o céu azul.Na terra negra afunda sombras
e
aguarda a alvura dos lírios.
Disseram-me que o arco-íris se pintava de sete-cores. Sempre pela mesma ordem: vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Também lhe chamam o arco-da-velha. Noutras falas, é o arco-no-céu, o arco-da-chuva, o arco-relâmpago e mais não sei. Sempre lhe chamei o arco-das-cores. Quando o sol se mostra por detrás da cortina da chuva, corro a espreitar o céu. E ainda hoje, quando o arco se mostra, o deslumbre me fica no sorriso dos olhos. Antes que a magia desapareça, cerro as pálpebras com força, a restaurar a minha reserva de cores. Até voltar a encontrá-lo, vou pintando o mundo a meu jeito. Do negro não quero saber. Teimo em louvar o branco.
Licínia Quitério
Entrançar luz e sombra
com as mãos do entardecer
nas cordas desfiadas do baloiço
Alindar as madeirascom a leveza das brumas
e a húmida firmeza dos abraços
Dizer valeu a pena
nas línguas dos países
desenhados nos atlas da memória
Escrever tranquilidade
com a caligrafia
dos segredos das caixas de cartão
Baloiçar baloiçarvai embora papão
sentir a grande voz e ali ficar
Baloiços ou balanços? Palavras em que nos sentamos à procura do ritmo inicial. Meninas em baloiços deram quadros célebres. Mais do que meninos. Transgressões consentidas a quem era exigido recato e contenção. Um baloiço em ruínas pendurado entre árvores é uma imagem muito forte que não quis aqui reproduzir. Preferível adivinhá-lo lá ao fundo, perto do portão que forçosamente haverá. Vou empenhar-me em consertar este baloiço. Se calhar precisarei de muito, muito tempo. Mas cumpre-me cuidar do sítio onde me irei sentar e balançar, balançar, quando chegar o momento de saber o fim da história. Não se preocupem. Sinto-me bem. Já deviam saber que sou dada a desvarios. Tão-badalão, cabeça-de-cão...
Licínia Quitério
Persigo há muito a senda dos espelhos.A intrigante e abismal distânciaonde tudo descansa. Reinos virtuaisde nevoeiros e acordes improváveis.Os espelhos não dormem. São atentos ao nascimento e à morte de imortais.Intacta guardam a memória dos quena sua transparência se colaram.Quem dera ao entardecer os penetrasse
o frio diamante do meu peitoe os incontáveis braços das ausências,
comovidos, rendidos, me pegassem.
Vaidosa. Não podia passar por um espelho sem nele se mirar. Não, não compunha o cabelo, não retocava a pintura. Nada desses gestos vulgares de fêmea em sedução. Olhava-se e começava a falar baixinho. Afastava-se e acenava leve, levemente. Depois, aproximava-se mais, mais. Até tocar a superfície fria, com as mãos, com a ponta do nariz. A tentar sobrepor-se à imagem. No espelho começava a opacidade de um círculo que lhe saía da boca e lhe tomava conta de parte do rosto. Nas palmas das mãos, a lâmina polida amornava. Um toque suave de um encontro esperado. Olhos bem abertos, quase dentro dos outros, dos iguais, do outro lado. Onde?
Ele um dia perguntou-lhe: Que procuras? Apanhada de surpresa, afastou-se, compôs a figura e disse: Nada. Jura que ouviu a outra, também a afastar-se, dizer: Tudo.
Vaidosa?
Licínia Quitério