27.12.17

ERA QUASE DE NOITE


Era quase de noite quase dia
era tarde e era cedo para chegar.
Em nós o vendaval e a calmaria

à nossa frente glorioso o mar

a provocar desejos de aventura.
Partir à descoberta de outras ilhas
num veleiro carregado de ternura
desvendar tesouros e maravilhas.

Era quase de noite e não chegámos
à terra prometida ao fruto apetecido
mas nas pedras do cais onde aportámos

havia gente de coração erguido
a aguardar a esperança que levámos
de um homem novo das trevas renascido.


Licínia Quitério

18.12.17

A INFÂNCIA





Havia tempo, todo o tempo
de viver a infância.
Havia caminhos longos
para percorrer a infância.
Havia uma pressa de chegar
ao fim da infância
para ficar do tamanho das pessoas
que já tinham perdido a infância.
A aspereza do saibro dos caminhos
ficou guardada nos joelhos da infância.
A bicicleta ajudou a encurtar
a estrada da infância.
As uvas amadureciam e perfumavam
os sabores da infância.

É preciso crescer, envelhecer, para poder contar
o que nunca aconteceu na infância.

Licínia Quitério

foto cedida por José Alfredo Almeida

13.12.17

NATAL

Meninos atiram pedras, meninos disparam balas.
Esta terra é minha, esta terra não é tua.
Como foi que tudo começou?
Como vai isto acabar?
Nunca, dizem os oráculos.
Vão-se matando, os meninos.
Tombam na terra de ninguém.
É Natal.

Licínia Quitério

7.12.17

UM DIA


Um  dia é um dia. O desencanto ou a euforia. O espanto ou a decepção. A vontade de ir ou de ficar. De abraçar ou de expulsar. A paixão ou a repulsa, o empenho ou a indiferença. A vontade de chuva ou de deserto, a acalmia ou o desassossego. Num dia nascem estrelas e arrefecem planetas. Num dia há pó de oiro e água de fruto, e poetas, e santos, e assassinos, e cobardes. Um dia é sempre inteiro, único, novo. Será lembrado ou esquecido, temido ou louvado. Todos os dias são de vida e de morte, de sombra e de luz, de explodir universos, de quebrar vidraças, de ser a galáxia e o fotão. Todos os dias podem ser do amor fúnebre da louva-a-deus e do amor de Orfeu recuperando Eurídice. Podem ser ou não os nossos dias.

Licínia Quitério

1.12.17

QUASE NADA


Não há como inverter esta jornada.
O que passou passou, o que doeu doeu.
De amor e desamor as pontas desatei

De guerra e paz quase nada aprendi.
De tudo o que vivi tão pouco sei
De todos os que amei uma flor recolhi
para agora oferecer a quem passar
pelo banco onde me sento onde me sinto
um quase tudo um quase nada.

Licínia Quitério

22.11.17

A PRESSA


Andamos apressados na colheita dos dias
não vá o sol queimar a pele dos frutos
a chuva magoar o verde-esperança
o vento derrubar as flores da macieira.
Temos medo de chegar tarde ao tempo da fartura
porque de fome nos contaram velhos homens
de muitas viagens muitos livros
mulheres poucas dispostas ao amor.
Vamos cabisbaixos cães de dono sem coleira nem trela
amarrados à cantata da fama e à luz do pote de oiro.
Chegaremos ou não a colher as virtudes e as glórias.
Assim curvados não veremos uma janela que nos chama
a alegria de uma flor de inverno.
Temos pressa.
Outra estação virá de repararmos nestas e noutras bagatelas.
Será o tempo da flor desmaiada da janela fechada.
Da rua nem se fala que o nome lhe perdemos
para sempre.

Licínia Quitério

14.11.17

ENTARDECER


As casas  vestem o ocre da tarde.
O velho plátano desenha-se na parede em frente.
É a hora de rever amigos que descem a rua.
O Sol derrama-se oblíquo a afinar a geometria das sombras.
Silenciosas as casas aguardam o regresso dos homens, das mulheres.
Algumas ficam vazias porque os donos partiram para outros lugares.
A mornidão do ar abafa as vozes dos transeuntes.
Passa um rapaz e o seu cão.
Passo eu também.
Entro em casa.
Nos meus olhos apaga-se a luz da rua.
É de tarde e anoiteço.

Licínia Quitério

10.11.17

BAIXAR A GUARDA


Um dia hei-de baixar a guarda
Expor o rosto e o corpo às balas
Gritar eis o banquete
A mesa posta é vossa

Assim pensava eu nos anos de rimar
Ternura com bravura
De avançar sobre escarpas
E abençoar  o tojo
De ver partir os barcos
Carregados de homens
E de os ver chegar
Carregados de raiva
E de outros homens

O rosto e o corpo gastos
A guarda toda em baixo
Os restos do banquete
Aqui os tendes

Assim eu digo nos anos de rimar
Sorrir com resistir
De avançar indiferente
Ao espinho e ao abismo

Os barcos já não partem
Ficam presos na linha
Do horizonte
Os homens vão ao mar
E às vezes voltam
E são peixes carregados de sal

Licínia Quitério

29.10.17

O BICHO DA TERRA



Ardem, queimam, iluminam.
Transportam archotes a apagar a noite.
Gritam a afugentar as sombras.
São meninos de oiro.
Cantam a convocar segredos
Que as altas aves guardam.
Dançam rente às ervas.
São meninas e têm nomes de flores.
Guardam o medo em velhos cofres e avançam.
Conhecem todos os países
E em nenhum se detêm.
São os viajantes do tempo.
Homens nascidos de mulheres.
Homens amantes de mulheres.
Homens amantes de outros homens.
Iguais na hora de chegar,
Na hora de partir.
Iguais no desespero e na esperança.
Poderosos. Cruéis. Solitários.
São deuses e habitam ilhas e desertos.
Inventam, constroem, destroem
E nada acabam.
Compram e vendem as terras e os corpos.
Beijam e são o mel.
Mordem e são o sangue.
São a palavra, a plateia, o palco.
São a mãe, a casa, o corredor dos ventos,
A força da levada.
São os filhos do Sol.
São o bicho da Terra.

Licínia Quitério

26.10.17

A MONTANHA


Imóvel como cão dormindo.
Se me perguntas
Digo-te montanha
A suportar o céu
A beber nuvens.
Ensinou o homem a subir
A rasgar-se nas pedras
A cair muitas vezes
A erguer-se de novo.
Chegado ao cume
Nele crava bandeiras.
Anuncia
Isto é meu
Isto sou eu.

A montanha deixa rolar
Mais uma pedra.
É o seu modo de contar o tempo.


Licínia Quitério

1.10.17

AS PALAVRAS



De gritos, de suspiros, de músicas,
de danças, de pinturas,
de tudo e nada se nutrem
as palavras.
Pedem abrigo no nosso ouvido interno.
Se as acolhemos, deslizam pela garganta,
procuram lá no fundo o coração.
São bandeiras de lume e o peito arde.
Desistem ou vão até ao lar da boca.
Retomam o fio da viagem.
Tornam-se  passo de baile, corda de guitarra.
Quando se soltam, são o gume ou a carícia,
a paz ou a batalha.
Às vezes são a morte, às vezes liberdade.
Se a sorte as acolher, serão a carne do poema.

Licínia Quitério

29.9.17

BALADA DA PORTA FECHADA


É a porta fechada
Dessa casa assombrada
No dizer das mulheres
Ligeiras no andar
E o vento a sussurrar
Vai chegar vai chegar
O tempo de arrombar
Essa porta fechada
Dessa casa assombrada
E a mulher a pensar
É comigo é comigo
Que ele está a falar
Amanhã vou voltar
Rente à casa passar
O meu ombro encostar
À ombreira da porta
Baixinho perguntar
Quem foi que te assombrou
Quem foi que te fechou
E a casa a responder
Alguém que não gostou
Da luz que em mim brilhou
E esta porta fechou
E sobre mim espalhou
Este manto de sombra
E as mulheres afastou
E os homens afastou
E o medo semeou
E desde então ninguém
Junto de mim passou
Nem sequer reparou
Que a luz não se apagou
E às vezes é luar
E às vezes nevoeiro
E às vezes é braseiro
A descair no mar
A mulher despertou
Não sabe se sonhou
Mas pela casa passou
E a porta estava aberta
E lá dentro era dia
E o vento sussurrou
Foste tu que mataste
A sombra que assombrou
A casa que voltou
A ser luz a ser guia
Tu que por mim passaste
Contra o medo lutaste
E o teu ombro apoiaste
Na ombreira da porta
Que não mais se fechou
Licínia Quitério

26.9.17

OLHA-ME



Olha-me, de olhos fechados, para melhor me veres. 
Toca-me, como se eu fosse de barro e pudesse quebrar. 
Fala-me, baixinho, que ainda não é dia na casa de orações.
Dá-me o teu manto que eu dou-te a minha pele.
Pega-me, que tu és pai e mãe e eu sou filho.
Leva-me para longe desta terra ingrata.
Deixa as jóias, as facas, as máquinas da fome.
Atreve-te ao grande mar de enganos.
O mundo inteiro está à nossa espera e nos receia.
Entre o ir e ficar, entre a morte e a morte, vamos.
Se formos sempre em frente, voltaremos,
porque a Terra é redonda, sabem os voadores.
Olha-me, toca-me, fala-me, leva-me
para lá das farpas, para lá do medo, ao país
que restou e onde se diz haver uma mulher
e um homem e um filho desejado
por nascer.


Licínia Quitério

11.9.17

CONVITE



No próximo dia 23 de Setembro, será apresentado este meu livro, editado pela Poética Edições, na Sociedade Guilherme Cossoul, Av. D.Carlos I, em Lisboa, pelas 17 horas. Francisco José Faraldo, escritor, será o apresentador.

Estão todos convidados para um encontro comigo e com o meu novo livro, no dia e local indicados.

Saudações fraternas.


Licínia Quitério

7.9.17

A PLANÍCIE


Quero dizer-vos que estou aqui
e me pergunto de onde venho
como cheguei
quem me pegou na mão
e disse vem e fala
vem e escreve
e eu falei e  eu escrevi
Depois foi só esperar que a voz
soubesse o marulhar das ondas
e as palavras fossem
o caminho onde toda a aventura
é uma planície aberta e limpa
à espera da semente que a fecunde
Não sei se sou a terra ou sou o grão
se sou a mão ou o arado
Sei que vou continuar
na voz do vento
no vai-vem das marés
sem perguntar quão vasta é a planície
quem me espera na outra face da Lua
Ninguém me deu o livro
das verdades
mas eu vou

Licínia Quitério

28.8.17

DESTROÇOS


Chegou sem se fazer anunciar
o tempo dos destroços, da ferrugem.
A árvore secou e será lume antes do pó
O portão já não serve, aberta a casa
antes da derrocada.
A roda já não roda, perdido o eixo e a memória.
Nada se perde, tudo se transforma,
com o suor do homem, a vontade do homem,
a construir futuros sobre as pedras de glória
do passado.

Licínia Quitério

26.8.17

A CORÇA


Podes ficar tranquilo.
O temporal passou.
O telhado furou
e a chuva pingou
sobre a dor do meu ombro.
O pouco que dormi
foi sempre em faz de conta,
não fosse a ventania
levantar o colchão
onde se escondia
das mágoas o cordão.
A parede rachou,
mas foi bom porque eu pude
ver um céu que foi meu,
em forma de crescente.
Recusei aceitar a hora do poente
e fiz bem, porque assim
nunca tive o punhal
do dia no final
a remexer a ferida
a esfacelar a pomba,
guardada no meu peito.
Depois, foi só esperar
que o temporal se fosse,
já farto de afrontar-me
da pele até ao osso.

Podes ficar tranquilo.
O temporal já foi.
Eu sei que outros virão,
em formas de tufão,
de lágrimas, cansaços,
mas eu aperto os braços
e seguro os pedaços
que sobraram de mim.
Semicerrando os olhos,
liberto a dor dos ombros,.
Compro um colchão de espuma
de sabão, do melhor.
Depois lá vou soprando
enquanto tiver força
e as bolas vão subindo,
de mil cores tingindo
o fio dos meus cabelos.

Podes ficar tranquilo.
Mais nenhum temporal
me pode causar mal.
Uma coisa te peço:
se entenderes que mereço,
embrulha com cuidado,
num pano de brocado,
meus desejos de corça
que um dia galopou
e na praia, ao nascente,
agita-o com firmeza
até teres a certeza
de que nada lá dentro
escondido ficou.

Licínia Quitério

20.8.17

ELES


Eles não são do nascente.
A noite é sua amante 
seu desvario e sossego.
Aprenderam os caminhos da lua
o piar da coruja o uivo do lobo.
Há flores que só à noite se mostram.
Eles sabem disso e não as colhem.
Há rios que só à noite sussurram
declarações de amor aos peixes e às pedras.
Eles escutam e vão tecendo uma canção de berço.
Eles rondam as mulheres e as engravidam.
Eles dão aos  homens a ardência do sol
a bravura dos braços e a bondade solitária
dos ocasos.
Eles são necessários.
Eles são tudo isto e muito mais seriam
se existissem.

Licínia Quitério

9.8.17

O VENTO NORTE


Este vento de Verão desnorteou-se.
Barafustou contra a rosa-dos-ventos,
desgrenhou-se e partiu 
armado de fúria e liberdade.
É vê-lo a uivar por entre as pedras,
a rir da curvatura de sebes e searas.
Detém-se por instantes qual corredor
na linha da partida e aí vai de novo.
Não há asa não há vela não há casco
não há homem que o domine.
É o tempo de mostrar que é o senhor do fogo
do naufrágio da perdição das sementes.
Porém, quem o quiser ouvir há-de saber
de uma mulher no cimo de um rochedo
a entoar uma canção de amor
a entrançar os seus cabelos de oiro
com as cordas que o vento lhe ofertou.
Histórias do vento norte que eu guardei
mas ninguém me contou.

Licínia Quitério

6.8.17

PESCADORES


Pescadores somos todos nós
aparelhados de armações e linhas
adivinhando os altos mares
ou os rios de passagem.
Há quem embarque ao encontro
do cardume maior da sua vida.
Há quem entre na água a terra à vista
e com pequeno peixe se contente.
Eu vou eu volto espera-me em casa
é o que dizem os pescadores do longe.
A casa sempre espera mas as mulheres
não aguentam tanto mar
tão pouco homem
ainda que farto o peixe.
Pescadores somos de mar e lua
experientes de tormenta
sabedores de marés e mareantes
a aventurar amores de travessia.

Partimos. Em terra fica um cais
de amarração e um relógio de areia
a contar dias até voltarmos
de rede rota e mãos vazias.
Pescadores, marinheiros
e outras gentes somos
armados de saudade e teimosia
a crer num amanhã de farta pescaria.


Licínia Quitério

29.7.17

RUELAS


Gosto de passear por antigas ruelas
sem pressas de alcançar as avenidas
pejadas de homens acabados de chegar
e de outros que ali contam madrugadas
 
Nessas ruelas há janelas de telhado
por onde a luz penetra afunilando os raios
trespassando vidros iluminando com doçura
os passos dos vultos caminhantes

Sei da velhice das ruelas das suas chagas
da sua solidão em noites pardas
e sei dos sonhos de outras noites
vejo-os ondulantes abraçados 
um riso em maré alta a subir a subir
a abrir de par em par as últimas janelas

Licínia Quitério

24.7.17

O DIA CLARO


Entra devagar no dia claro

Pensa-te nuvem
deixa fluir os teus contornos
Se uma ave cruzar o teu tecido
sê a ave
voa
aprende o seu piar
a construção do ninho
acolhe o novo cantar

Pensa-te rio
amacia as pedras
Se um peixe acontecer
sê o peixe
nada
aprende a subida das águas
entrega as sementes
espera da vida o seu retorno

Pensa-te um homem
uma nuvem enrolada à cintura
uma ave no peito

Estás agora mais perto das estrelas
iguais à flores do teu jardim
ou à vontade de entenderes
a escuridão do dia claro

Licínia Quitério

17.7.17

AMIGO


Os olhos presos no céu 
Fiel ao solo onde nasceu
Seguidor dos irmãos
Desenhador das ondas da planície
É nas horas de sombra
a bússola oferecida
à hesitação do caminheiro

Podeis pensar cipreste na Toscana
podeis

Eu o nomeio Amigo
esguio, forte, altivo
Um traço humano na paisagem

Licínia Quitério

9.7.17

OS VERBOS


Olhar
o céu da tarde

Pacificar
o turbilhão dos gestos

Ouvir
a música no búzio
a que chamamos coração


Convocar
o colo das mulheres
para os filhos dos homens
que partiram e ninguém sabe
quando voltarão

Inventar
um nome para a cidade
depois de Tróia, de Lidice, de Mossul,
e outras que Cassandra
não salvou

Cerrar
as portadas do dia

Preparar
a noite e os seus trabalhos
de segredo e olvido

Serão outros os verbos do amanhã
Todos no seu modo infinito
no seu tempo imperfeito

Havemos de encontrar
melhor conjugação

Licínia Quitério

2.7.17

SURPREENDE-ME



Faz-me uma surpresa
Gosto que me façam surpresas
Leio e escrevo, mas não encontro
histórias que me espantem
ou me façam chorar
ou me ponham a pensar
como acontecia no tempo
dos lobos maus
da fada-passarinho
da casa de chocolate
Para onde foram?
Conta-me
Ainda que mintas, conta-me
Eu vou acreditar
Ou então

Traz-me uma coisa que eu nunca tenha visto
Pode ser uma pedra, uma pequena pedra
igual a todas as que vi
Diz-me que a apanhaste
na estrada de Damasco

ou no deserto de Gobi 
Eu vou acreditar
Verdades não me tragas
Surpreende-me
mente-me
traz-me qualquer coisa que me faça rir
continuar a rir

adormecer


Licínia Quitério

20.6.17

A QUEIMA


As palavras também ardem.
Há palavras queimadas dentro de nós.
Ressuscitarão com as primeiras chuvas.
Assim saibamos o que fazer com elas.

Licínia Quitério

19.6.17

O ESPANTO



Todos sabíamos
Havia de vir o fogo
Com o poder de queimar
De matar
Todos sabíamos
Da avidez do fogo
Pela terra e seus pertences
Do seu desprezo pela água
Da sua força para enganar os ventos
E com eles bailar e subir
Da sua cupidez pelos corpos
Pelo sangue dos corpos
Do seu prazer da devora
Até ao osso até ao pó
Sabíamos e esperámos
Talvez o anjo nos salvasse
O anjo veio
E a sua espada era de fogo

E o nosso espanto é a cor da cinza

Licínia Quitério

10.6.17

ESCRITAS


Caligrafias,  de Ariana Andrade


no tempo do gelo ardente
na noite de fogo e lobo
depois de ter abatido
a corça mais inocente
com setas feitas de pedra
com arcos feitos de pau
com força feita de fome
 o homem se levantou
da esteira da solidão
e às paredes da gruta
 traços e voltas lançou
e com eles se encantou
e os traços multiplicou
e os traços deram as vozes
e as voltas deram as danças
e as danças eram de gente
e a gente era igual ao homem
que outro homem descobriu
nas pedras onde dançavam
as voltas que ali traçou
e com elas se amigou
 e ao outro dia chegou
uma mulher que passou
a mão nos traços e voltas 
e se aconchegou na esteira 
com o homem que inventou
do amor a carta primeira

Licínia Quitério

31.5.17

INTERLÚDIO


Um trevo de quatro folhas,
um raminho de hortelã,
uma plumagem de espargo,
florinhas da cor da neve.
Um raminho leve, leve,
tão pequenino a caber
na palma da minha mão.
Uma jarra transparente
com a água que alimente
do verde a fome e a sede.
Pequenos gestos os meus
a acarinhar, a compor,
desenhos que sei de cor.
Se tudo assim sempre fosse,
um tempo suave e doce
com o odor da ternura,
sem o rasto da amargura,
se tudo fosse e eu soubesse...


Licínia Quitério

29.5.17

A PENUMBRA


São os dias da penumbra.
A luz escorrente nas vidraças,
um fio de memória
a desenhar as asas
da pomba da infância,
e com a pomba a mãe,
o olhar da mãe
a segurar o traço,
e o candeeiro.
Sim, havia um candeeiro
que se quebrou
na escassez da casa.
Foi quando a rua entrou
na história, 
muito depois da pomba,
muito depois da mãe.
A rua de Hopper
da cidade silenciosa,
uma mulher à janela
com um vestido vermelho,
um carro parado,
as chaminés sem fumo.
No céu um candeeiro
que o pintor não viu.
A pomba o levou no bico
e o suspendeu.
Tudo é possível nos dias
da penumbra
se uma mulher vestida
de vermelho
pensa na infância
e a desenha.

Licínia Quitério

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