31.7.09

CLARISSE 13



Parece não pertencer ao álbum. Uma índia em chão de sol e areia. De pronto Clarisse a revisita, num fim de tarde ardente, frente ao pequeno rio de atrevimentos e inocências. A fragilidade dos barquinhos a remos, chape-chape no zumbido da tarde. O dorso prateado das tainhas brincalhonas, em saltos pelas tangentes dos rodopios concêntricos. Dizia: o mar está a entrar. Ou então: o rio está fechado. Aquele não era um rio de saída. Esperava a subida da maré e acolhia minúsculos camarões translúcidos. Ganhava ondas, pequeninas é certo, e saboreava o sal e os farrapos de algas cor de alface. Clarisse pensava: assim há-de ser o meu rio em tempo de maré alta. Inquietações renovadas, sabores exóticos, anúncios de outras paragens. Por agora, ficava assim, sentada, os braços rodeando os joelhos, os pés na areia quente e húmida, aguardando a chegada da sombra que o morro estendia no rio, a ensinar o poente, o recolhimento aos fundões do leito, o sono dos peixes sem pálpebras. Na esteira do olhar de Clarisse há uma jangada, rio acima, e um chapéu de palha vermelho que lá esqueceu na última travessia. Voltará, uma manhã, quando o primeiro sol soltar da pele do rio os véus do despertar. Clarisse dirá: o mar está a entrar. O Homem dirá: esperava que o dissesses. E só ela saberá da alegria no sorriso envergonhado do Homem que finge medir com uma vara a altura do sol.

Licínia Quitério

28.7.09

DOS TIGRES


O novelo das horas tem as cores térreas do tigre,
a tensão das garras do tigre na tapada,
a quietude do concílio das gaivotas,
um zumbido de moscas em redes de ganância.

Só a água, quando for dela o dia, ternamente,
dissolverá o erro, e o medo escorrerá, aveludado,
pelos corpos dos amantes. Da fúria, um beijo novo.
Os tigres dormem, na tapada.

Licínia Quitério

22.7.09

ROSA LÍQUIDA

Uma rosa líquida nas veias
é o que resta do jardim
depois do vento agudo
no esplendor do ácer.
Da abundância da chuva
ficaram feridas no saibro
provisório dos caminhos.
Cicatrizes serão, enigmáticas,
belas, nos dias quentes
dos sabidos enganos, desejados.
Uma rosa negra, líquida,
desafiando a fome, o vidro.

Licínia Quitério

17.7.09

CLARISSE 12



Ainda hoje Clarisse não fala de vulcões com a voz em sosssego. Nunca tinha visto algum, até ao dia em que pisou terra nascida quando Clarisse já contava alguns sedimentos. No declive, sentiu que o chão lhe ditava o avanço do corpo, sem que ela comandasse os próprios passos. Lembra-se do rugido do mar, lá em baixo, encorpado e escuro, ameaçando violar a juventude do monte, grande demais para que filho lhe chamasse. Recorda, com clareza, no longe-perto, a mudez dum rosto a esfumar-se contra o céu em fogo. E ela, Clarisse, olhando para trás e caminhando, encosta abaixo, cada vez mais perto da voz do profundo. Não sentia medo, mas um espanto que lhe punha lágrimas nas palmas das mãos. Tudo se confundia, na poeira dum tempo ignoto. Como num sonho dentro de outro e de outro ainda, sem porta para o despertar. Foi quando se apresentou um obstáculo sob os pés. Uma plantinha, verde, tímida, pedindo para não ser esmagada. Um aceno de vida nova, perfurando a lava, afastando a incomodidade da areia. Era da cor dos seus olhos e atrevia-se a enfrentar pequenos insectos que voltavam. Talvez peixes de outrora, abandonados no confronto brutal entre o fogo e a água. O corpo de Clarisse reganhou vontade e gesto. Sorriu à planta e retrocedeu. No perto-longe, o rosto esperava-a e mostrava-lhe uma estrada polvilhada de caminheiros. Clarisse aceitou a estrada e disse baixinho: Pareceu-me avistar uma rola de peito róseo. O rosto explicou, condescendente: Não as há nesta latitude. Hoje gostou de rever o registo no álbum. Só ela consegue divisar o rosto contra o céu. Uma presença, uma espera. Clarisse sabe que há uma paisagem que lhe pertence e a que voltará. Que importa que seja lava, ou mar, ou planta, ou fogo? Tudo o que for lá será.

Licínia Quitério

12.7.09

UMA PRECE, UM TIJOLO



Uma prece, um tijolo,
uma deusa, uma pedra,
uma morte, uma tinta,
um cimento de suor e de fé.

O desafio do tecto,
a certeza do arco,
as batalhas da luz,
a escalada dos muros,
o aprumo, o rigor,
o atrevimento, o risco.

A mão do arquitecto
presa ao fuste
e um rasto de cor
ensanguentada
a encher o copo de oiro
do anúncio do dia
de uma outra construção.


Talvez igual, talvez a tal.

Licínia Quitério

6.7.09

CLARISSE 11


Arqueologia de passados é o mester de Clarisse. A leitura dos vestígios cada vez mais difícil. Houve um tempo, um modo, um lugar. Houve porque as marcas lá estão. Mas que ficou das linhas do rosto, do desenho do corpo? Da vibração das cores que seduziram Clarisse e o seu outro olhar? Qual o nome da terra, do rio, se nome teve, das árvores que por perto tinha de haver? Que murmúrios de seixos na corrente, que gentes ali passando ou vivendo? Clarisse semi-cerra os olhos, tentando ver para além do grão do tempo, da cortina acastanhada a enevoar o quadro outrora luminoso e fresco. Fotograma salvo do rescaldo do incêndio que abrasou a cidade e deixou assomos de dor nas polpas dos dedos de Clarisse. Uma noite passou e uma ligeira febre agitou os sonhos de Clarisse. Cavalgando as dúvidas do dia, a incongruência do sono mostrou-lhe uma montanha forrada de abetos. Clarisse subia a montanha, suspensa por um fio. Vistas de cima, as árvores abriam as copas quais alfaces gigantes. Reparou que calçava chinelas de uma só tira que ameaçavam cair ao menor balanço do fio. Afligiu-se, temeu a nudez dos pés, reparou que sob as copas havia movimentos que podiam ser de feras, ávidas de comida chegada dos altos. Pediu socorro sem voz ao seu outro olhar, mas ele estava entretido a medir pelo relógio a altura da montanha. A um esticão do fio, acordou e, estremunhada, correu a rever o fotograma. O sonho devolvera-lhe o lugar, o tempo, os nomes. Consegue distinguir as chinelas, pousadas numa pedra, e sentir nos pés o frio da água. Clarisse lembra-se agora de ter sido assim. Subia montanhas e calçava chinelas vermelhas de uma só tira. Sempre pronta a mergulhar em fios de água pura no brilho do seu outro olhar. Histórias que os álbuns reeditam...

Licínia Quitério

1.7.09

FRAGMENTOS



Pode ocorrer um verão em que o calor
seja martelo e escopro contra as dunas
e as fragmente teimosamente fragmente
até que a visão táctil das miragens
desfaça a maldição dos velhos
e o sangue do mar em terra firme
apazigue o cansaço dos rebanhos
e a secura aprendida dos escravos.

Intactas ficarão as grutas dos mistérios
com as tábuas de sal por decifrar.
Os homens do deserto moldarão
com as mãos ardidas letras novas
outras perguntas cantos jovens
repetidos rostos de mulheres-leoas
enigmáticas como devem ser.

Ínfimos fragmentos só o verão os traz
e os crava na dor da pele em chamas.


Licínia Quitério

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