6.7.09

CLARISSE 11


Arqueologia de passados é o mester de Clarisse. A leitura dos vestígios cada vez mais difícil. Houve um tempo, um modo, um lugar. Houve porque as marcas lá estão. Mas que ficou das linhas do rosto, do desenho do corpo? Da vibração das cores que seduziram Clarisse e o seu outro olhar? Qual o nome da terra, do rio, se nome teve, das árvores que por perto tinha de haver? Que murmúrios de seixos na corrente, que gentes ali passando ou vivendo? Clarisse semi-cerra os olhos, tentando ver para além do grão do tempo, da cortina acastanhada a enevoar o quadro outrora luminoso e fresco. Fotograma salvo do rescaldo do incêndio que abrasou a cidade e deixou assomos de dor nas polpas dos dedos de Clarisse. Uma noite passou e uma ligeira febre agitou os sonhos de Clarisse. Cavalgando as dúvidas do dia, a incongruência do sono mostrou-lhe uma montanha forrada de abetos. Clarisse subia a montanha, suspensa por um fio. Vistas de cima, as árvores abriam as copas quais alfaces gigantes. Reparou que calçava chinelas de uma só tira que ameaçavam cair ao menor balanço do fio. Afligiu-se, temeu a nudez dos pés, reparou que sob as copas havia movimentos que podiam ser de feras, ávidas de comida chegada dos altos. Pediu socorro sem voz ao seu outro olhar, mas ele estava entretido a medir pelo relógio a altura da montanha. A um esticão do fio, acordou e, estremunhada, correu a rever o fotograma. O sonho devolvera-lhe o lugar, o tempo, os nomes. Consegue distinguir as chinelas, pousadas numa pedra, e sentir nos pés o frio da água. Clarisse lembra-se agora de ter sido assim. Subia montanhas e calçava chinelas vermelhas de uma só tira. Sempre pronta a mergulhar em fios de água pura no brilho do seu outro olhar. Histórias que os álbuns reeditam...

Licínia Quitério

11 comentários:

Paula Raposo disse...

A memória é algo de espantoso! Gostei de te ler. Beijos.

bettips disse...

A montanha quando se sobre.
A montanha quando se desce.
Entre os tempos, a ternura do lembrar.
Bjinho

Lídia Borges disse...

Viagens nas asas da memória, a calcorrear espaços e tempos, em busca de um passado que se quer presente.

Obrigada!

Anónimo disse...

Em cada tempo um olhar.
Naquele tempo (já difuso),o sonho,mergulha na nitidez da imagem

Noite Feliz
JA

© Maria Manuel disse...

Os sonhos devolvendo a memória dos dias idos a Clarisse. Belo.

~pi disse...

o que também gosto de

subir

suspensa por um

f

i

o


( e depois morar

lá, para sempre,




~

vieira calado disse...

Um naco bem bom, de prosa!

Bjs

Manuel Veiga disse...

a sabedoria de Clarisse... os sonhos de Clarisse...

os múltiplos olhares de Clarisse...

e o sereno domínio das coisas. passadas e presentes.

belíssimo.
beijo

Arábica disse...

Sabes, Clarisse, ainda bem que o sonho devolve à montanha os corpos que um dia a subiram.

Sabes, Clarisse, a montanha,
é a memória dos nossos sonhos
mais simples.
Com uma única tira, pronta a ser um fio d´agua...

Realmente sinto uma empatia especial, pela tua Clarisse.

Beijinhos, menina.

mariab disse...

fascinante a peregrinação de Clarisse pelas memórias. e a sua terna serenidade.
beijo

M. disse...

Adoro este falar das memórias pela boca de Clarisse.

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