23.10.13

NOITE


Transfigura-se o homem na poalha da noite, 

o musgo a crescer na invisibilidade das cortinas. 
Na pele da noite pingam soluços. 
Borboletas gigantes endoidecem e 
rasgam as asas na melancolia do homem. 
Todas as ruas sobem. 
O homem avista um castelo e sobe, 
os ossos atados ao coração. 
Todas as noites são de chuva se 
o homem tiver esquecido o sabor das lágrimas. 
Quem sabe uma palavra fundamental 
o guie na subida, o restaure, e o seu nome
se dissolva numa avalanche de luar.
Só a noite absoluta condena ou purifica.

Licínia Quitério

15.10.13

ESTA CASA













Esta casa tão frágil que qualquer brisa abana
guarda elmos, espadas e couraças,
testemunhos de guerra no tempo da inquietude.
Dos dias da acalmia nem as rendas ficaram
que os bichos nos armários delas se alimentaram.
É uma casa pintada a manchas, cicatrizes,
com uma asa de corvo presa ao tecto a lembrar
o anúncio, a persistência, o rancor, o triunfo.
Solitária casa abandonada, exposta ao invasor
que conta portas e lhes arranca os trincos.
Não resiste a casa. Ganhou a transparência,
a leveza dos véus que já não velam. Sobe.

Licínia Quitério

12.10.13

NÃO SÃO ASSIM


Não são assim os lobos, 
na luz compacta do calor. 
Esta é a luz dos sonhos 
em que eles se passeiam 
e nós com eles vamos, 
sem nada nos doer, 

tranquilos, mudos, leves.
E as árvores connosco.


Licínia Quitério

7.10.13

O MÁRMORE



Podias lá tu saber, rei de absoluto poder e relativas fraquezas, que, mais de dois séculos volvidos sobre o vulto do teu sonho de pedra, 
os meus olhos ficariam presos numa certa luz, numa certa música que, numa certa hora, se desprenderam da inocência, da brancura, da lhaneza de dois anjinhos, com asas e penas e cabelos anelados, espreitando, um ao outro aconchegados, aquela vastidão, aquela altura, aquela estonteante simetria. Quiseste, ó rei, deslumbrar outros reis, outros reis de reis, outros planetas que ainda não haviam nascido, já que tais nascimentos não houveras decretado. Filhos de teus filhos, que pela grande pedra viriam ao teu mundo, nela receberiam coroas e depois túmulos e as mesmas coroas e outros túmulos, que de tal se faz a vida e a morte dela. Tudo assim foi e assim não foi e tu de nada soubeste, na frieza de outras pedras menos claras. De verdade, os meus olhos agora aqui, absortos, debruçados na longevidade do mármore, no breve tempo dos reis. 

Licínia Quitério

6.10.13

PRAIA


No dia em que tudo estiver gasto, o riso da hiena, o arrulhar do pombo, a palavra rochedo, a palavra algodão, e, mais do que isso, a vontade de morder um fruto como quem bebe a lua, nesse dia falar-te-ei de coisas inocentes, cá dentro da porta selada, da casa do silêncio, dos móveis mil vezes limpos, do adejar das traças sobre as roupas, que só eu oiço, só eu. Era uma vez, assim começo, um grão de areia, dois grãos de areia, três grãos de areia que juntei e fui fazer a praia. Era uma vez, assim termino, uma praia, outra praia, e outra, e as juntei e nada mais pude fazer.

Licínia Quitério

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