28.11.20

MÃOS

 


Nas minhas mãos nascem caminhos
por onde o sangue corre
a levar recados do coração.
Sei de borboletas que ali flutuam
porque o bater das asas se anuncia
no tremor da pele.
Digo borboletas
mas poderia dizer antigos sonhos
que não desistem de adejar.
Digo das mãos
para dizer trabalhos nunca acabados,
na orla das grandes tempestades,
à entrada dos túneis imensos
com uma sombra ao fundo.
Digo mãos
como se amor fosse
a mão a acenar a outra que passa,
branca e fugidia,
nas noites de lua nova.

Licínia Quitério

15.11.20

DESERTAS AS CIDADES


Desertas as cidades

quando todos faltaram

ao encontro com o medo

e a derrota

Nem a voz dos cães

nem o restolhar das folhas

Nada soa nas paredes das casas

Nem o respirar dos velhos

nem a risada dos novos

Cidades prisioneiras

de gente prisioneira

do silêncio novo

encomendado e servido

em bandejas de cobre

oxidadas de verdete e malícia

Cidades programando a ruína

desprezando a gente e os seus lamentos

alimentando a lassidão ou o desespero

a raiva ou a desistência

num bailado incoerente

estúpido e silencioso

Não há traço de morte nas cidades desertas

Vivem o seu prelúdio da loucura


Licínia Quitério

1.11.20

MARÉ

 



não posso escrever sobre o sal

como se fosse areia
uma rocha é uma rocha e não posso
esmagá-la com os dedos desta mão
não posso escrever medo
com as letras todas do amor
no tempo do impossível
tudo é o contrário de si mesmo
e a minha vontade pouco conta
contra o muro invisível
da tormenta
tudo muda e tudo permanece
entre o longe e o perto
apagou-se a distância
não posso escrever porque não sei
o inacessível alfabeto
da silenciosa impiedosa maré

Licínia Quitério

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