1.7.16

TORRENTE



Não tentes perceber o que escrevo. 
Eu estou sempre por fora do que escrevo. 
Salto sobre as palavras, agarro-as para logo as largar. 
Alguém que se atreva a domá-las, revoltas, insubmissas, impalpáveis. 
O gato salta sobre o pássaro, joga com ele a vida e a morte. 
Não há uma palavra que diga o intervalo entre a garra e a pena. 
Foi ontem que libertei um pássaro. 
Foi ontem que me libertei de mais uma morte.
Escrevo tudo isto a pensar em jogos inúteis, em seduções inúteis. 
Vou arrancando ervas e matando lagartas que comem as ervas. 
Não há uma palavra que diga o antes e o depois do que acontece quando liberto um pássaro ou esmago uma lagarta. 
Não há de facto uma palavra para vida e morte. 
Porque não tenho essa palavra, não tentes perceber o que escrevo. 
Lê, apenas, deitado na torrente que te leve. 

Licínia Quitério

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