28.12.08

REDACÇÃO

O Quintal da Avó



Na casa da avó havia um quintal. Nas casas dos ricos havia jardins. E havia roseiras e a avó chamava belas-portuguesas às rosas que elas davam. As couves galegas eram muito altas. Algumas mais altas que os netos mais altos. As folhas de baixo iam para os coelhos que tinham um olhar assustado. A pereira dava peras francesas que os bichos, antes dos netos mais velhos, atacavam sem dó nem piedade. No quintal da avó havia um alegrete. Nunca mais encontrei nenhum. Era uma tirinha comprida de terra e tinha à volta um murinho de cimento caiado de branco. Como um canteiro. Mas não era. Era um alegrete. Todo o ano tinha flores. As minhas preferidas eram os brincos-de-princesa. Dava um trabalhão catar as lagartas e matar os caracóis e as lesmas. A avó capava os craveiros e assim os cravos que resistiam à capadela eram enormes. Por esta altura do ano estavam quase a florir as alcoviteiras-da-primavera. A avó nunca soube que se chamavam frésias. Ao sair da porta da cozinha a avó tinha plantado uma roseira que tinha crescido muito e dava rosas-de-toucar. O quintal da avó era enorme. Tão grande que hoje fizeram nele uma salinha de um restaurante. O resto do restaurante é o resto da casa que foi da minha avó. Quando lá vou almoçar procuro ficar na mesa debaixo da pereira das peras francesas. Se levo amigos, digo sempre "Vamos ao Alegrete". Depois acham que eu estou a brincar porque o nome do restaurante não é esse. Porque é que havia de ser?


Nota: Este texto não tem nada a ver com O Sítio do Poema, dirão. Fantasias minhas, de fim de ano.
Até 2009. Por aqui voltaremos a encontrar-nos.

Licínia Quitério

23.12.08

BOAS FESTAS

Uma manchinha de cor. Um imperceptível aceno. O riso de modestas bagas procurando o alto. Posso chamar-lhes Natal. São o meu presente para os caminheiros que por aqui passarem.




Licínia Quitério

19.12.08

OUTONO



Hei-de partir antes dos ventos altos.
Nos braços levo uma escrita tardia
com cheiro a frutos secos em terraços.
Grinaldas de lilazes no olhar.
Nos ombros o matiz bordado nas florestas
pelas mulheres magníficas do verão.

Encurtados aqui os trabalhos do sol
soltarei os gritos de pobres e de bichos
contra a insânia maior que a invernia.

De pronto partirei que um outro povo
aguarda o tempo novo além do capricórnio.


Licínia Quitério

14.12.08

DA URGÊNCIA


Amanhecem filigranas nas janelas.
Apetece ficar adiando a vigília.
O piano da noite no ouvido interno.
Os dedos em carícias à mudez das estátuas.
Um vapor finíssimo nas máscaras de gelo.
Para romper este sono é urgente um clarim, uma faca, um incêndio, um veneno, uma flor, uma flor...


Licínia Quitério

9.12.08

EM REDOR DAS CASAS

Estão cansadas as casas.

Corroídas, encurvadas as traves.
O pó do ferro é o que sobrou das guerras.
Estilhaços de rocha onde murcharam flores.
Um choro leve nas madeiras.
Impávidas assistem à trajectória das estrelas.
Por cada lua nova uma minúscula fresta no telhado.
Visitas raras sempre partem antes que o frio as anoiteça.
Vozes antigas ecoam no secreto desvão.
Já os cavalos galopam em redor das casas.

Licínia Quitério

4.12.08

É O QUE SABEMOS










Persistentes, audazes somos
moldando o barro,
cinzelando a pedra,
construindo.
De riso em dor,
de dor em riso,
vamos rasgando os arcos,
as pontes alongando.
Por vezes nos detemos
que a muralha é de medos.
Se for preciso desenhamos
um alado vocábulo
para além da saudade.
Por vezes recuamos
e apagamos as flores
no bolor das paredes.
De voz em voz,
de mão em mão,
semeamos vontades
e madrugadas
e pássaros de cristal.
Construtores de sombra e claridade,
é o que sabemos.

Licínia Quitério

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