Um homem-menino chegado da soleira de outro tempo abriu um sorriso nos olhos de Clarisse. Não se lembra do nome dele. Dirá que se chama Fernando. Tinha fome e tinha medo e levaram-no ao encontro de outras fomes, de outros medos. Era uma vez uma aldeia perdida, lá no fundo, passado que fosse o leito seco do ribeiro... Era? Clarisse no declive da serra, rodeada de canções de luta e sobressalto, levando nos braços a maior esperança do mundo. Fernando espantava os medos acariciando livros de ensinar a ler, os livros com que ele, Fernando, ensinaria a ler. Pelas serras fora, os ogres ateavam fogos e tocavam sinos a rebate, anunciando a chegada do anti-Cristo. Clarisse duvida agora se aquele foi tempo de desejo ou de passagem. Os álbuns não mentem, mas confundem. O sol do meio-dia era uma afronta nas paredes enrugadas e na magreza das couves. Histórias que talvez tenham contado a Clarisse ou, quem sabe, ela as tenha inventado quando à noitinha uma mulher lhe bateu à porta para ser ouvida. Mulher-desgraça, desacertada, pecadora de amores alheios, solteira e perdida e calada. Fernando era o rei dos meninos quando lhes lia histórias e os deixava tocar as capas grossas dos livros. Havia enxadas e forquilhas e ameaças de exorcismos. Ou não. Não pode saber quando isso acabou. Se acabou. Clarisse julga lembrar-se de ter falado, no luar, na rua. As pessoas iam chegando e ficavam e sentavam-se no chão. Um lobo uivou ali perto. Ninguém se importou. Os cães estavam sossegados, lambendo o pelo e as feridas. Que terá dito Clarisse? Por certo, as palavras necessárias que não sabia e já esqueceu. Os livros de Fernando a passarem de mão em mão, a fecharem a roda dos corpos no luar de todos. Que mais terá acontecido? Por onde andará em contra-luz aquele homem-menino? Que novas fomes terá sabido? Que histórias contará sobre o luar das noites que o fizeram rei das crianças, naquele Verão de fantasmas contra o tempo?
Clarisse há-de ter as respostas que moram noutros álbuns. Entretanto...
Licínia Quitério
15 comentários:
como alguém disse, parece estarmos a ler uma clarisse do outro lado do espelho, tal é a capacidade imaginativa e imagética testes textos, agora com personagens que enriquecem a história
fantástico!
Os álbuns de Clarisse são inesgotáveis. Bela, muito bela esta parte de um texto que se vem completando de forma mágica.
Um beijo Licínia.
Tempo de encantamentos e de aprendizagem. Hoje de saudades..
E só a poesia pode exorcizar as saudades - ou reavivá-las?
Passeio-me nas memórias de Clarisse. Como se minhas fossem. Em azul.
Um abraço
Há sortilégios e luas, sombras e neblinas, sobretudo silhuetas de leituras com vida...
abraços!
Entretanto, fico à espera de mais.
Belíssimo texto, em tudo.
Boa semana!
estive a ler todos os textos.
todos são excelentes.
nao sei qual o melhor...
beijo para quem escreve assim!
... e Clarisse desabrochou Mulher na fome do Homem-menino. e caminhou histórias nos vultos dos caminhos. e passeou flores presas nos cabelos. e livros nas estrelas.
admirável. sempre
beijos
Licínia,
haverá foto mais perfeita
que a foto guardada no coração da
memória, onde o rei menino vive?
Obrigada pela partilha.
Um beijo
Aguardo as respostas da Clarisse
Este texto aguça
uma história
inesgotável
Sempre soberba a escrita
Soberbo!
Clarisse , a eterna buscadora deixa-nos pedaços de histórias , a medida que nos enche os olhos de perplexidades e anotações....
O prazer de um texto terreal
abraço
____________ JRMARTO
... no quinto album de Clarisse estamos chegados a um tempo em que os meninos-homens traziam mensagens de esperança em forma de livros. É provável que Clarisse tenha inventado algumas das histórias que aqui hoje nos traz. Mas se o fez, deve ter sido na melhor das intenções: a de fazer luz num momento em que as histórias (ou a História?) por serem tão enegrecidas, dela careciam. É pelo menos esse, o meu entendimento. Mas que gostava da saber mais sobre esse menino-homem que também contava histórias, lá isso gostava...
beijos e óptimo fim de semana.
Encantatório, Licínia. Não sei se quero que Clarisse feche o álbum...
Bjinho
"Onde andará aquele menino?", pergunta Clarisse.
Onde andará a Licínia?, terá ele perguntado ao longo dos anos.
As respostas virão. Para felicidade de ambos.
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