As ameixas e as abelhas, juntas em cada Verão. A passividade dos frutos em oferenda ao zumbido das asas. Acontecia a doçura antes do mel, como é preciso acontecer no amor. Nas folhas do agrião triunfava o verde, em louvor da água escorrida do tanque. Concha de regas, de lavagens de roupa e de banhos de alegria das crianças, em miragens de mar. Clarisse passeia-se no quintal da casa que dantes lhe contavam. Campo de engenhos e de esforços de mulher com sementeiras e colheitas nos braços. As árvores, as flores, os frutos, as sementes, em espaço exíguo, medido a palmo, estudadas com rigor a sombra e a luz e a demora dos dias. Histórias de vitórias e derrotas contra bichos devoradores, sempre à espreita de lugar na mesa posta, atravessavam as ameias dos muros e pairavam na rua para serem levadas no bico dos pássaros, ao fim da tarde. Foi por uma rola de peito róseo que Clarisse veio a sabê-las, de coração, como se fossem suas. Esta lassidão que não abandona Clarisse põe um véu sobre o rosto da casa que torna a ser jovem e liso, com o olhar aberto e limpo das tecelãs flamengas. A casa parada num tempo em que nada envelhece, em que ninguém falta à chamada. Coabitam as idades intactas e cruzam falas da história que lhes coube. Clarisse entende os sons da casa: o silvo do vapor nas panelas, as vozes do folhetim na rádio, o pedalar da máquina de costura, o sacho nas ervas daninhas, o chiar da roldana no poço, os gritos das crianças, de todas as crianças que permanecem, únicas, continuadas. Clarisse distingue-as pelas alturas, que em tudo o resto lhe parecem iguais. Vendo melhor, uma delas tem o nome Fernando no bolso do bibe e um livro debaixo do braço.
Clarisse esforça-se, em vão, por recordar o nome da grande terra, mãe da casa que a habita. Espera tê-lo de volta, ao folhear, descuidada, uma insónia, num álbum que não sabia.
Licínia Quitério
15 comentários:
E de memórias vais escrevendo Clarisse...
Um abraço
"Acontecia a doçura antes do mel, como é preciso acontecer no amor"
Clarice conhece os sons da casa e os mistérios da vida. Belíssimo!
Um beijo Licínia.
Que nostalgia morna e doce! Como recrias bem, em traços de ternura, os tempos que me fizeram lembrar os meus. Obrigada por me fazeres ouvir alguns sons perdidos, alguns cheiros esquecidos...
Estas casas por onde se nos habita o romance, se nos aquece a memória... Um gesto esboçado, um rir pequeno, tão sentido o branco da cal!
Quando.
Bjinho
Ah como se iluminam os olhos de Clarisse na memória de ameixa e mel!
Ah como rejubila o coração de Clarisse na claridade tranquila deste lago de amor vivido...
E os engenhos continuam em Clarisse, agora na forma de letra...como quem colhe amores perfeitos...
Beijo, Licínia.
E uma boa noite.
QUE BELO TEXTO, LICINIA.
E O FRIO E O VENTO QUE VOLTOU!!!!
BJS
TD
A memória é assim como que uma magia que nos permite passar o Inverno como se fosse Verão.
Talvez que a Clarisse o soubesse...
abraços!
Esta Clarisse
ainda vai soprar velas
em mares
nunca antes navegados
Num universo extremamente sensorial, Clarisse vai-se revelando de grande sesibilidade, uma pequena poeta...
gosto da sua Clarisse, Lícinia.
venho a segui-la e espero um dia vê-la em papel.
Sublinho: "Acontecia a doçura antes do mel, como é preciso acontecer no amor"
isto é belíssimo. assim seja sempre.
beijo
Mel
... um prazer este , o de ir sabendo a memória de Clarisse, o que sabe de cor , que é também o que sabe de coração ...
um abraço
____________ JRMARTO
Gosto desta frescura na mistura de sombras e luz. Na fotografia e nas palavras. E lembrei-me de "A Morgadinha dos Canaviais".
Clarisse hoje.
Mulher "com sementeiras e colheitas nos braços". desenhando sortilégios róseos (breves que sejam) no peito das rolas...
beijo
... e à sexta vez, temos Clarisse a interpretar fielmente as formas e os sons do seu universo. Não se limita a dar nome às coisas e pessoas; traça-lhes o presente - e nota-se, aqui e além, a vontade de desbravar o seu futuro...
Não te detenhas Clarisse. Conta-nos como foi esse teu tempo. Que é nosso também.
beijos e sorrisos.
Pois que seja uma boa noite e depois disso, um domingo com muito sol a espreguiçar-se na Clarisse.
Para que mais tarde, nos contes.
Beijinhos
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