Que vês em mim, perguntava Clarisse, antes de pensar em folhear os álbuns. Diz-me de que cor são os teus olhos, respondia-lhe o Homem. Só tu, que sabes ler, podes saber, insinuava Clarisse. Eram longos e limpos os dias de perguntas sem respostas e de respostas nunca perguntadas. Falavam da cor dos olhos para desvendarem o mistério do tanque da horta. Clarisse gostava de lápis de cor. Pedia-lhes que lhe ensinassem o início do tanque quando ainda aguardava a chegada das folhas caídas e o nascimento das larvas. Nunca conseguiu que lhe dissessem. Talvez o tanque tivesse chegado depois das águas com acordos secretos de vida e morte em sua substância. Também o Homem procurava a transparência das tintas que lhe desse a cor primordial dos líquidos. Em vão. Sempre a enganadora imobilidade de um mundo onde, sabiam, se agitavam multidões de predadores, em ritos de sobrevivência. Os lápis de cor de Clarisse lado a lado com as tintas do Homem. Interrogando-se na mudez do olhar. Que vês em mim, perguntava Clarisse. Qual é a cor dos teus olhos, dizia o Homem. Nenhum deles aprendeu a cor antes do tanque, antes da água, antes do apodrecimento das folhas e da metamorfose das larvas. Vivia assim Clarisse, quando ainda não devorava passados. Já uma rola de peito róseo matava a sede no tanque, sempre que a horta se reerguia na frescura da tarde velha.
Licínia Quitério
12 comentários:
Tão bonito!
Peca por acabar depressa.
Esta Clarisse levou-me ao tempo em que também eu "não devorava passados" nos lápis de cor, na vida no tanque, nas perguntas sem respostas...
Um beijo
Tão suave e doce...gostei muito! Beijos.
leio com agrado o retorno de Clarisse, de que cor os seus olhos?
E tu, mulher sábia nestas coisas de cores e mistérios da vida, lá vais desvendando passados...
Sempre fabulosa a sua escrita
que me desperta
para a complexidade
de tudo o que é simples
e virtuoso
Como gostei destes sons e da sua musicalidade e retenho:
"Talvez o tanque tivesse chegado depois das águas com acordos secretos de vida e morte em sua substância."
De que cor são os teus olhos Clarisse, continua o Homem a perguntar depois da metamorfose do corpo e da rola.
Clarisse tem olhos cor de navio e saudade, de cais e de ferro, quando lhe responde, muitos anos depois, que têm a cor dos lápis, iniciados por ele...
Gosto destas tuas Clarisses, Licínia. :)
Abraço risonho de tarde de sol, grato pelo espaço no tempo, pela doce companhia das rosas nas pedras e palavras nos rostos, em partilha de vidas.
maravilhosa, a tua escrita. doce e cheia de antigas visões.
obrigada por me teres visitado.
beijos
Gostei do regresso de Clarice e deste magnífico texto.
"Que vês em mim, perguntava Clarisse. Qual é a cor dos teus olhos, dizia o Homem" Muito belo!
Um beiji Licínia.
visual
doce
e nunca,
[ mas-nunca-nunca
demasiado velha,
a tarde,
beijo
~
belíssimo esse "diálogo" secreto entre o lapis de cor de Clarisse e as tintas do Homem.
talvez o azul líquido dos olhos da criança. talvez a "cor primordial dos líquidos:"
vá lá saber-se!!!...
beijo
Como uma barra de vestido que se torna a vestir, desbotadas as cores de então?
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