7.6.09

CLARISSE 9

Que linda falua que lá vem, lá vem. É uma falua que vem de Belém. É assim que Clarisse começa a cantarolar, mal o álbum lhe abre o portão do pátio. As meninas em fila e a outra, destacada, perguntando. Peço ao meu barqueiro se nos deixa passar. Passará, passará. Se não for a mãe da frente, é o filho lá detrás. O barqueiro decidia. Tu. E tu. E tu. Tu não. Clarissse sentiu um aperto no peito. Hoje o barqueiro voltou a rejeitá-la. Quedou-se nesta margem, chorando baixinho, para as outras meninas não ouvirem. Que lin-da fa-lu-a... Pelo chão, as redondezas meladas das nêsperas que os pardais dilaceraram, sem piedade. As ameixas verdes já maiores que cerejas. Se os ventos desabridos da primavera não lhes matarem a vontade de crescer, haverá troncos de árvore vergados ao peso das bolinhas amarelo-doce. No pátio vizinho, por detrás do muro alto, Clarisse pode ouvir o coro das falas gritadas dos rapazes que não brincam aos barqueiros com poderes de rejeitar. Falta no muro uma pedra, do tamanho da curiosidade no centro do olhar de Clarisse. Recorda o desassossego nos bicos dos pés, o tum-tum do coraçãozito nos ouvidos, a alegria de ter visto, do lado de lá do muro, o menino que já lia histórias, o menino que todo o tempo depois leu a Clarisse as maravilhosas histórias do mundo. Era o sol a pique a rendilhar de sombras a terra batida e os bancos de pedra e a brancura do poço. Tapado, pois claro, que lá dentro morava a donzela com cabelos de fogo que água nenhuma conseguia apagar. Numa noite de lobos famintos, o Homem que foi menino contou a Clarisse como no fundo dos poços mais fundos viviam filhos dilectos de estrelas e dançavam feitiços de luar. Hoje, Clarisse não teme a escolha do barqueiro nem a ameaça dos lobos, apaziguadores que são os velhos álbuns em que dormitam pátios interiores.


Licínia Quitério

12 comentários:

Lídia Borges disse...

O Barqueiro,o medo da rejeição... A infancia demonstrada naquilo que tem de mais belo: a inocência.

Maravilhosa esta Clarisse!

Maria P. disse...

:)Consigo "ouvir-te" a ler esta "Clarisse".

Beijinho*

Paula Raposo disse...

Tão bonito! Muitos beijos.

Anónimo disse...

Olá
Percorri nos caminhos da memória,o pátio por onde "Clarisse"(s) de bata branca,"esvoaçava"
Também lá vi o poço branco e os bancos de pedra e ... e ...
Clarisse,já nada teme,atingiu a tranquilidade do tempo ...
J.A.

Mar Arável disse...

Historia doce com palavras

em castelo

memórias e ensinamentos

A inocência partilhada.

Bjs

© Maria Manuel disse...

rever a infância com Clarisse, os jogos, os medos, os olhares, os dias de primavera, a curiosidade permanente, a ânsia de histórias...

Manuel Veiga disse...

palavras ternas e leves. como algodão doce...

serena a distância das coisas...

beijos e beijos

Justine disse...

O tempo da natureza poderia ser o de agora, aqui no jardim, com redondezas de nêsperas e ameixas ainda verdes. O outro tempo, o da memória, embora pertença ao teu album, faz-me saltar para o meu.
Tanto ensinamento me trazes, com este texto riquíssimo! Por favor, continua a folhear o teu album e a enternecer-me...

bettips disse...

Reconforta-me saber-te. Também olhando o velho poço com árvore.
Bjinho

hfm disse...

Do desassossego da pedra e do muro. Belíssimo.

Arábica disse...

Hoje, Clarisse, conhece o sabor do fogo e a água que apazigua a falua, que em noites de lua cheia, a nevega, sem rejeição.

Clarisse já não teme.

Clarisse, já transpôs o muro.

Em noites de sonho, está de mãos dadas com o Homem, que em seus olhos, foi menino.


Abraçço, amiga.

M. disse...

Lindo!

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