10.6.10

CLARISSE 15


Muito tempo passou desde que Clarisse folheou o último álbum. Nesse ano a invernia foi intensa, cruel, não deixando abertas no céu para que o sol  aquecesse o peito enregelado. Clarisse fingia-se sem tempo para reviver passados, numa moleza encostada a lareiras apagadas e a conversas alongadas com gente de outros álbuns. Já mal recordava os lugares e as músicas e os silêncios irrepetíveis bordados de pétalas de flores que ninguém se atrevia a nomear. E  caía numa melancolia de romance quando as rolas vinham beber ao tanque de regas, tão precisado de obras como se alguém ainda se importasse com a secura da terra que o verão impõe. Já a primavera ia adiantada quando um estremeção a fez virar-se, rodando sobre a cintura, resguardando a segurança dos pés, temendo por instinto uma tontura. E ela veio, leve e distante, sem exageros, como em sonhos. Do sonho seria a rola de peito róseo a que faltava uma asa e que a fitava, com seu olhinho de vidro, à beira de água, sem beber. Clarisse entendeu o sinal e foi finalmente folhear o último álbum. A humidade do inverno fizera das suas e um rosto que jurava ter conhecido estava agora manchado, de contornos esbatidos, como se fosse uma pintura a quem o desgaste não tivesse porém ocultado a serenidade e a beleza que se desprendem da palavra amor. Clarisse sentiu que a história tinha chegado ao fim e que não voltaria a folhear os álbuns. Antes de o fechar,  viu uma rosa branca, ainda estranhamente branca, a segurar um poema. Ilusão, só podia ser. A rosa e o poema tinham partido há muito com o homem do retrato manchado, sereno e belo, que o tempo não deixou que noutro se tornasse. Os olhos de Clarisse continuam verdes, verde-água, quando for tempo disso, e a enfrentar a estrada onde nunca faltam poemas e rosas brancas.

Foi esta uma maneira de contar a história de Clarisse, devoradora de passados e teimosamente construtora de futuros.

Licínia Quitério

7 comentários:

hfm disse...

Gosto desta construtora. Um beijo

Alien8 disse...

Vai deixar muitas saudades, a Clarisse. Mas tudo tem o seu tempo.

Bravo, Licínia!

Virgínia do Carmo disse...

Não será esta a história de todos os que amam?

Beijinhos

Justine disse...

Serenamente.Com os olhos rasos de água. Mas teimosamente viva!
Grande beijo

Manuel Veiga disse...

Clarisse tecedeira de fantasias e memórias. a colorir o tempo de cores delicadas. e ternas...

beio

M. disse...

Uma história linda e um homem muito belo.

M. disse...

O menino tem que vir aqui, Licínia. É preciso que venha. Deve gostar. Também é algo do seu passado.

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