22.11.16

A NUVEM



Na minha rua há casas
onde se acoitam cansaços
de rostos sempre iguais,
de trabalhos sempre iguais.
Debruçadas nas varandas
há solidões de fim de dia
ou melhor
de dias infinitos.
Já tão distante o berço,
já tão esfriado o leito,
já tão esquecido o amor.

Também há casas
com olhos de crianças.
Sabe-se lá o que vê
uma criança quando ri
ou quando chora
ou nos olha de soslaio
por entre as malhas
apertadas do horário.
As crianças são mansas,
têm gatos e cães
e muitos telecomandos
e são terrivelmente sossegadas
enquanto aprendem a exterminar
exterminadores
e monstros fumegantes
dominadores de novas galáxias.

Pode a terra tremer, 
pode a fome apertar
lá longe
longe como dizer Japão
ou Indochina, 
nas casas da minha rua 
não se passa nada.
As pessoas entram,
as pessoas saem
e dormem e acordam
a horas certas.
Interrogam-se apenas
quando uma nuvem passa
debaixo da janela.
Dizem que virá ela fazer.
Nessa noite só vão adormecer
depois de verem que não há nuvens
debaixo da cama.
Temem que uma nuvem
as leve enquanto dormem.
De resto, pode a terra tremer,
pode a fome apertar
longe
muito longe
aqui não se passa nada.

Licínia Quitério

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