28.7.08

A CASA



A casa sempre estala
que não há outra forma
de, no gelo da terra, perdurar.
Depois há os incêndios dos sonos breves
a tatuar na cal escorpiões,
crescentes de lua,
asas de borboleta,
algumas palavras sem vogais,
inesperadas simetrias.
Assim a grande casa,
monumental ruína,
livro do princípio com uma página em branco.
Alinhados permanecem os ninhos
de onde partiram todas as aves
no cinismo dos calendários.
A luz a justifica,
a define, a revela, a oferece
ao braço redentor do esquecimento.
Nada mais a dizer.

Licínia Quitério

23.7.08

MEU VELEIRO











Tenho um veleiro amarrado na varanda do olhar. Solto-o no odor salgado das tardes de verão e fico a vê-lo sorrir enquanto cavalga ondas meninas. Elegante e ágil esta nau de inventos, navegando à vista de todas as praias. Sabe de cor seu tempo de passeio, no verso e reverso da rota que traçou. Quando relembro a hora, ele regressa, revigorado, à sua amarração, seu cais, seu porto, seu país. Flor do Mar, meu veleiro, minha terra firme, minha única viagem.


Licínia Quitério

16.7.08

RECADOS









Uma palavra ou duas sob
o texto ou a bem dizer
na margem dele o vento traz
nas tardes crepusculares
do desalento.

Assim o assomar da branca flor
sob a esteira recente
do deserto.

Estrelas só podem ser
estes recados luminosos
da invencível pátria
dos afectos.

Licínia Quitério

1.7.08

DESPOJOS




São meus estes despojos?
A quentura do ar fecha a pergunta
no lar da minha boca.
Heróis de anónimas batalhas
passeiam-se ondulantes
na luz negra das janelas.
Dormem as aves.
Os lagartos devoram
a parede de sol.
Migrantes as águas,
tombados os cântaros.

Sítios que me habitam
nas horas do silêncio.

Licínia Quitério


P.S. Por uns tempos, este Sítio e o Outro irão ficar desabitados de mim. Deixo-os ao vosso cuidado. Sei que regarão as flores, darão comida aos bichos e limparão as palavras de alguma poeira impertinente. No regresso, receberão um sorriso grato que nada melhor me ocorre que vos possa ofertar.
Licínia Quitério

24.6.08

CANTATA DO DESASSOMBRO




Vou por entre as sombras
com uma saia de luz
e um trevo ao peito

Não sei dos símbolos
na casca das bétulas
nem da fala dos bruxos
curvados sobre a noite
nem do hálito das gárgulas
corroendo as pedras

Mergulho na água
a escrita das minhas mãos
e inauguro um livro
com a medida exacta
de um corpo nos meus braços

Sei da vida o que a morte me ensinou
A minha saia é luz e nada temo


Licínia Quitério

19.6.08

REGRESSO


Pela janela da infância, o mundo entrava.
O mundo, quero dizer, o canto estridente do canário da vizinha Celeste, com ganchos de tartaruga no carrapito.
O bater sola, cadenciado, do Júlio sapateiro, de beata apagada ao canto da boca.
O chiar do rodado do carro de bois, pachorrentos como se usa dizer dos bois.
Os gritos, os gritos dos meninos da rua que brincavam e lutavam e se insultavam, a enganar a fome da côdea que tardava.
Os gritos, os gritos das mães, a filarem-lhes as orelhas.
O piar dos pardais, à boquinha da noite, em luta por um abrigo nos braços do velho plátano solitário.
Noite feita, os morcegos a rasarem a janela, com seu chiar de ratos.
As corujas das torres a mandarem calar o murmúrio dos ares: “Chiiu, chiiu, chiiu…”.
Os pirilampos, na magia dormente das noites de Verão. Pequeninas estrelas ao alcance das pequeninas mãos.

Quando a janela da infância se fechava, começava o sono. E nele entrava um novo mundo, encantado e bizarro.



Era então que o canário da vizinha Celeste, liberto da prisão, voava como um louco em redor da cabeça do Júlio sapateiro, a bater sola sem fazer ruído, empoleirado no carro de bois que, vendo bem, nem era um carro, mas uma gaiola a abarrotar de pardais.
E havia os gritos, os gritos das corujas das torres, procurando as orelhas dos meninos da rua.
Depois, num clarão, as corujas, transformadas em pirilampos, pousavam, brandamente, no carrapito da vizinha Celeste.

Também os mundos se cansam.Talvez por isso, chegava o tempo em que tudo parava. E aquele mundo subia, subia, subia, deixando cá em baixo, ao rés do sono, a quietude, a grande paz. Até que, despertado pelo sol madrugador, o canário da vizinha Celeste cantava de novo, em estridências de amarelo oiro, a pedir-me que abrisse, inda por mais um dia, a janela da infância por onde entrava o mundo.


Licínia Quitério

13.6.08

CANSADOS RIOS



Se me perguntas
de que águas
me alimento

digo-te do tempo
em que os rios

tranquilos rios
de penas brancas

amaciavam mágoas
nos ombros da verdura

nada mais te digo
que hoje todas as palavras
são águas de outros rios

cansados rios
de chumbo e desassossego


Licínia Quitério

8.6.08

UMA PORTA

Provavelmente foi o cansaço de certas vozes que me fez desviar para uma ruela batida pelo sol violento do meio do dia. Era a única porta da primeira casa ao alcance da minha mão esquerda. Já não bem uma porta, mas um objecto ali esquecido pelos muitos anos da gente que pela casa passou. Na porta, uma montra de vidro estilhaçado. Vendo melhor, um quadro, uma colagem de despojos de batalhas presas no ranger dos dentes. Decadências, pensei, enquanto guardava o quadro na galeria da minúscula máquina de apanhar memórias. Uma pontinha de remorso, como se tivesse tentado roubar a alma a alguém.


Licínia Quitério

1.6.08

UM CORAÇÃO

Vestes talhadas em

claros panos de aconchego.

Sombras de orientes

a adornar águas de agosto.

Doiradas cabeleiras

anunciadas na fala das estrelas.

O zumbido ondulante dos insectos.

O azul, o grande azul

sobre a memória da terra calcinada.

Indiferente ao estrépito dos mundos,

neste desvão das horas se reclina

absorto um coração.



Licínia Quitério

26.5.08

JÓIAS


Dizia que havia de guardá-las num cofre inviolável. E acrescentava: ao abrigo das mansas insinuações dos deserdados e das curiosidades de escribas ocasionais. Conseguiu os seus intentos. Uma incrustação de madre-pérola na porta robusta anunciava -Jóias-. A chave trazia-a pendurada ao pescoço, balanceando nas malhas de um fio de prata. Quando a dona arrefeceu de viver, a chave deixou-se tocar e mostrou uma minúscula inscrição: Pega as pérolas. Bebe as lágrimas. Até hoje ninguém se atreveu a abrir o cofre.


Licínia Quitério

21.5.08

A NEVE HÁ-DE SER


no meu país a neve há-de ser cor-de-rosa.

eu a esmagar nos dedos flores de seda.

eu com uma rosa a morder-me na boca.

eu deitada na branca planície dos teus olhos.

eu a dançar nas espirais da tua voz.

eu no ramo mais tenro da árvore de cristal.

eu com um animal ferido nos braços.

eu com uma corda de esparto em redor da cintura.

eu a cobrir de versos os muros velhos do meu país.


Licínia Quitério

16.5.08

SOBREVIVOS


Não sabemos a dor dos peixes

quando seca o lago em pleno verão.


Premonições tiveram

e amorteceram cintilações nocturnas.

Enfeitaram de escamas o relevo dos fundos

a assegurar refúgio às últimas frescuras.

Por entre o lodo chegaram

outras guelras, outras mãos

e o novo tempo lhes chamou anfíbios.

Têm o ar robusto dos sobrevivos.

Desconfiam da firmeza da terra.

Vão pedindo à chuva notícias do lago.

Só ela sabe quanta devastação.


Licínia Quitério

10.5.08

NOTICIÁRIO



Notícias da Resistência:

As chuvas persistem em inundar a planície.
Quando as águas se retiram e descem aos vales sombrios, ficam estranhos desenhos de dores entrecruzadas.
Os aprendizes de adivinhos escrevem o passado nos jornais que ninguém lê.
Na casa, os móveis continuam a estratégia do pó para iludirem os antigos olhares.
Em quartos alugados, dizem-se palavras clandestinas e muitas mulheres as recebem nos colos remoçados.
Os poderosos insistem em abrir estradas de breu onde as formigas exaustas se suicidam.

Última hora:

Uma jovem planta de acanto, prestes a dar à luz, pediu asilo a uma mata de castanheiros. Deles, o mais velho e mais sábio ordenou que lhe dessem uma beberagem verde.


Nota de rodapé:

Aqui na Resistência chamamos-lhe Xarope de Utopia. Usamos e abusamos.

Licínia Quitério

6.5.08

ARQUITECTURA





Não voltes a perguntar-me
o caminho do céu.
Eu moro aqui
nas sólidas construções.
Esta é a arquitectura dos tectos falsos.
Só demando a limpidez dos vidros,
a afirmação das cores,
a exactidão dos ângulos.
O resto é com os pássaros.


Licínia Quitério

30.4.08

MAIOS


Salta fora da caminha p'ra que o Maio não possa entrar. A minha velha vizinha não se chega a levantar. Cantavam as vozes da rádio. Eu não entendia, mas trauteava.

Estás amarela. Deixaste entrar o Maio. Ralhava a avó, zeladora da continuidade dos temores ancestrais.

Para a semana vou a Lisboa ter com uns amigos. Avisava o pai, sem dizer no primeiro de Maio. A mãe suspirava e traçava um nervoso discreto no cós da saia.

Os estudantes tomaram a Sorbonne. Os operários tomaram as fábricas. O coração da Europa batia forte. Cheguei tarde. A polícia já limpara as ruas, mas senti o cheiro do novo Maio.

O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido! Nunca o choro e o riso se tinham encontrado para cavalgarem o rio colossal da liberdade. Estive lá.

Amanhã vou a Lisboa ter com uns amigos. Festejar o Primeiro de Maio. Digo isto bem alto. Ouvem-me?


Licínia Quitério

23.4.08

É ABRIL

Foi quando Abril chegou que encetei a subida da nova encosta. Lembro-me bem das lágrimas de meu pai que enfim podia chorar como só chora um homem a quem obrigaram a calar meio século de vida. Lembro-me dos abraços aos amigos enquanto gritávamos na praça pública: Cairam! Eles cairam! Lembro-me de um certo olhar que com o meu para sempre se cruzou, na luz baça duma sala em que por fim se soltavam histórias de nada ter e de muito querer.

Tem sido uma encosta íngreme. De muitas flores e de muitas pedras.

Hoje leio as notícias e estremeço. Lucros com muitos zeros à direita, reformas opulentas. Os sem casa, os sem emprego, os sem saúde, os velhos, muitos velhos. Os sem esperança, os sem voz, os com medo, os com fome. Os arrogantes, os rastejantes, os pedintes. Também os sonhadores e os limpos e os que falam verdade e os que não vendem nem compram porque só sabem dar.

Sou feita de muito Abril. Quase cheguei ao cimo da encosta.

Vou ainda envolver-me na lembrança do clarão das ruas e dos risos, suavemente deslizar pelo dia e afagar um cravo cor de sangue e glória.

Um terno abraço, Companheiros!


Licínia Quitério

17.4.08

UM HOMEM
















Com quantos golpes
se constrói um homem?
Do adamastor ao santo
quanta palpitação
até ao rebentar
das veias sob a pedra?
Quantas lâminas
para rasgar o oval
deserto e branco
do átrio do olhar?
De quantas cores se tinge
o pano de emoções
com que se forra o berço,
com que se apaga a chama?
Incontáveis os gritos
soltos em cada poro
até se abrir o ventre
à flor da claridade.
Da aridez da terra
um vulto de homem nasce.
Por ele se engrandece
uma casa do céu.


Licínia Quitério

8.4.08

ANDANTE




foto de J. Abel







Vem da noite insone das copas. Esquecido do fantasma das décadas nos ombros, assombrado pela poalha de esmeraldas na paisagem, segue o trilho dos eternos caminheiros. Uma casa ao longe, uma porta aberta, uma presença. Ainda não - este o seu grito na manhã. Com uma garra no peito, aguarda o eco. Um dia, quando a porta da casa se fechar, não saberá ouvi-lo. Hoje, modulados numa estranha harmonia, os sons regressam. Continua, com um sorriso líquido nos olhos. Vai riscando o cinzento das bermas com a cor sanguínea dos cabelos da urze quase seca.

Licínia Quitério

1.4.08

UMA ROSA


"Caminhava com uma rosa ao ombro." - Foi o que disse quando a detiveram atrapalhando o trânsito, no alinhavo branco da avenida, e lhe atiraram um porquê.
"Bem pesado, o saco à tiracolo. Bem leve, o cheiro da rosa." - Isto disse o autuante. Só ela ouviu.

Licínia Quitério

25.3.08

DE SÚBITO











De súbito uma cor
a confundir o branco
um pequeno volume
a deformar o nada
um claro atrevimento
na placidez do sono

uma preciosidade
uma jóia sem nome
um rasto de cometa
o recado de um sol

como se fosse possível
enunciar instantes

como se fosse prestável


Licínia Quitério

arquivo

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