Pela janela da infância o mundo
entrava.
O mundo, quero dizer, o canto
estridente
do canário da vizinha Celeste,
com um carrapito preso por
ganchos de tartaruga.
O bater sola, cadenciado, do
Júlio sapateiro,
de beata apagada ao canto da
boca.
O chiar do rodado do carro de
bois,
pachorrentos como se usa dizer
dos bois.
Os gritos, sobretudo os gritos
dos meninos da rua
que brincavam e lutavam e se
insultavam,
a enganar a fome da côdea que
tardava.
E os gritos, os gritos das mães,
a filarem-lhes as orelhas,
Meu vadio, meu malandro,
Ah nha mãe na me bata qu’eu na
torno a fazer.
O piar dos pardais, à boquinha da
noite,
disputando um abrigo nos braços
enormes
do velho plátano solitário.
Noite feita, os morcegos rasando
a janela da infância.
Estranhos pássaros a chiarem como
ratos.
E as corujas das torres a
mandarem calar o murmúrio dos ares.
Chiiu, chiiu, chiiu…
E os pirilampos, na magia
dormente das noites de Verão,
pequeninas estrelas ao alcance
das pequeninas mãos.
Quando a janela da infância se
fechava, começava o sono
e nele entrava o mundo, em nova
ordem,
bizarro e encantatório.
Licínia Quitério, 1992
1 comentário:
infâncias (in)felizes, num mundo já tão distante...
o poema, datado, trás memórias dum tempo obscuro, pobre e rural.
um profundo sentir.
abraço
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