25.9.25

A VASSOURA

 A vassoura, com sua haste altiva,

varria, que para isso vassoura foi criada.

Empunhada a preceito, que tudo tem de ter sua mestria,

varria o pó acumulado nas dobras dos degraus.

Cuidados de enfermeira, digamos maternais,

pouco usuais em tempos imperfeitos.

 

Quem dera ser degrau que alguém subisse

e fosse acumulando sombras pelos cantos.

Vassoura chegaria, que mesmo para ela tempo há,

e varreria, eficaz, por vezes a roçar uma carícia,

os restos que até lá fossem parar

para que degrau de pedra pessoa se sentisse.


Licínia Quitério

Mafra, Dezembro de 2005



24.9.25

VÍCIO

 Tenho o vício dos teus olhos

das tuas mãos em tremura

da tua boca de seda

escaldante como o carvão

na minha lareira acesa.

Da tua voz registada

no meu ouvido profundo.

Tenho o vício de te ver

em memórias de veludo

nas sementes espalhadas

pelas flores que não cuidei.

Tenho o vício de sentir

as dores que não rejeitei.

Tenho o vício de cheirar

campos  que não cultivei.

Tenho o vício de voltar

a caminhos que não pisei.

Tenho o vício de me rir

do choro que já chorei

e o vício da solidão

que me envolva de lembranças

das andanças que vivi.

Tenho o vício de escutar

segredos que me contaram

e aqueles que não contei.

Mais do que toda a virtude

é água pura a correr

o vício de te querer

sabendo que te não quero.


Licínia Quitério, 2006

23.9.25

AS MÃOS

 Para além de nós ficam as mãos.

Com elas percebemos e palpamos

e moldamos o ar que respiramos.

As carícias, mesmo as que não demos,

fazem das mãos a nossa eterna idade,

a nossa infância a tactear o mundo.

Com elas nos prendemos ou soltamos

e falamos mais fundo do que as vozes.

São as mãos que nos marcam a presença.

Talvez não mãos, mas asas ansiosas

sempre à espera do voo nas alturas.

Há belas mãos, inteiras, tão galantes,

mãos de príncipe a desbravar silvados,

sem se doerem inda que o sangue aflore.

Pelas mãos nos perdemos e achamos.

Onde elas chegam chega o nosso amor.

 

 Licínia Quitério, 2005

22.9.25

VIDA


gente que passa o tempo desvivido
vai ao supermercado ao fim da tarde
à prateleira de cima das virtudes
no corredor ao fundo da ilusão
vidas em chamas a ocultar a cinza
vidas em pastas com fechos de correr
que por vezes se encravam no embaraço
de mostrar da folha em branco a decepção
vidas de gente que cruza a nossa vida
e nela entra e sai sem lhe darmos guarida
perdidos que estamos na procura dos fios
a embrulhar mais dias e mais vidas

Licínia Quitério, 2006

AJUDA

 Alguém pediu ajuda.

Ou foi o murmurar da água do ribeiro?

Ou o rumorejar das hastes do salgueiro?

Ou o cão a pisar folhas mortas de Outono?

É um choro de criança ao abandono?

É o lamento de um pobre esfomeado?

É a raiva do peixe picado pelo anzol?

É mulher a parir desamparada?

É um andar peregrino?

Uma onda de mar que se perdeu do sal?

Um pássaro do norte que se perdeu ao sul?

Um abraço sem força que se perdeu do amor?

Uma palavra solta que perdeu o sentido?

Uma saudade do amigo distante?

Uma dor sem remédio?

Uma flor despedida pelo vento do jardim?

Um sorriso sem rosto onde possa habitar?

Uma voz desgarrada sem saber ecoar?

Alguém pediu ajuda.

Ou foi no meu ouvido o sangue a latejar?

Melhor partir, dormir ou fingir ignorar.


Licínia Quitério

 Mafra, Fevereiro de 2006

 

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