28.8.12

MEIO DIA


Nos teatros do meio dia acontecem as tragédias.
As sombras poisam imóveis na ambição da luz.
São a definição, a petrificação das formas.
Ao meio do dia morrem as estátuas.

Licínia Quitério

24.8.12

URGÊNCIA



Urgência é esta febre de romper 
as brumas matinais e divisar 
os sinais da viagem. 
Sei da finitude dos astros 
e do infinito vazio onde nadam os sonhos. 
Milhares de livros se abriram 
à minha passagem e outros me aguardam
num desvão da cidade.
Um rasgão no telhado há de surgir 
e os meus ombros vergarão 
à luz da grande mãe.

Escrevo com as letras que aprendi
e mais não posso fazer
do que esperar o cântico do silêncio.

Licínia Quitério

14.8.12

QUE CHOVA


Que chova. Abundantemente, chova. 

Que o mar receba as lágrimas do céu 
e lhes ensine o sal e a saudade. 
Que a chuva alumbre as dores 
dos penhascos e os livre da sede 
e os agrida e os comova e os lave.
Que chegue a noite e a chuva dance
nos faróis, no vento, nas grutas
onde dorme o pó e a escuridão.
Que chova sobre o tédio e a demência
e as mãos dos homens sejam concha
e reaprendam o saber das águas
vivas, livres, circulares, eternas.

Licínia Quitério

6.8.12

AGOSTO


Neste hemisfério, onde agosto 
se abre  
à devassa do sol, é que folheio o verão,

soletro a imensidão dos dias e recupero
o olhar magnífico dos homens do deserto.
As macieiras vergam-se ao poder dos sumos.
As fadas da luz soltam risadas e tomam 
nomes de crianças polvilhando as praias.
A impaciência das chamas só acalma 
nas memórias de paz jazentes nos aquários.
No mês da grande lua, um frémito perpassa
as folhagens da noite. Trémulos, os homens
avançam a derrubar as invisíveis grades.
Os seus braços sobem, ansiando pelas torres
onde possam ser corujas, fartos de serem ratos.

Licínia Quitério

30.7.12

ESTE LUGAR


Ah este lugar sofrido de penúrias
este corpo cansado de anestesias
e provérbios
este retângulo de sol e ousadias
breves como breves os ganhos
os acertos e os projetos
Um pé nas pedras negras outro
nas pedras brancas
disciplina disciplina
pequenas travessuras
insurrreições de pouco sangue
revoluções até de flor na boca
Um travo amargo de ciúme
palavras afiadas palavrões
de toureiro e fadista
Amores lendários tumulares reais 

de realezas e nobrezas
que o povaréu não ama 

nem aproveita a cama
Nebulosos impérios hão de vir
e a salvação oh a salvação
há de estar ali à mão 

de semear papoilas e não
colher o pão
Amarrado à cabeceira
deste continente
o lugar não sente
o cheiro da semente
da serpente
Venha depressa a rima
que lhe dê
o ensejo 
de gritar


Nunca mais a morte do desejo

Nunca mais

Licínia Quitério

23.7.12

OS CÃES


Silentes os cães da lua
na descida da falésia
no silvo dos canaviais
na norma antiga das marés
Mansos os cães da noite morna
esquecidos de feras e de carne
Cães como peixes
calados 
de olhos líquidos
abertos na escuridão
Recordam os cães do sol
as suas vozes rubras
as caudas vigorosas
os olhos limpos
enfrentando a solidez da terra
Isso foi antes da lama
da cinza
da compra da indiferença
Desceram a falésia
São os cães da noite
calados e frios
como peixes de vidro


Licínia Quitério

14.7.12

BOM SERIA, POEMA

Bom seria mergulhar em ti, poema, inaugurar-te as águas na nascente, dar-te a sombra do meu corpo e o mais reluzente dos meus cálices. Devolver-te os segredos e os medos, a infinita ternura dos amados, a imparável vertigem dos amantes. Ondear na curva dos teus versos, dançar nos compassos  inesperados das vozes que te habitam. Arrasar-te as fronteiras, ser correnteza e margem e o tecido antes da margem, para além da margem. Bom seria, poema, possuir-te como macho  e ser na mesma noite a tua fêmea. Cravar-te imprecações em cada sílaba e afagar-te como mãe de última cria. Confundir com o leite dos meus olhos o sal do teu caminho. Atormentar-te, abençoar-te, como coisa amada e imperfeita, eternamente inacabada e ausente, na escuridão das florestas em que  vives, em que vivo. Bom seria, poema, beber-te as águas e partir contigo em busca da outra fonte.


Licínia Quitério   

11.7.12

NOVOS TEMPOS


http://www.tertuliadeebooks.com/catalog/Categoria4


Através deste link poderão adquirir o meu livro "De Pé sobre o Silêncio". A edição em papel está esgotada. Os novos tempos permitem que, editado como ebook, possa ser posto à venda por um preço muito inferior. É o futuro? Não, é o presente. Obrigada pela vossa atenção.


Licínia Quitério

8.7.12

LIBERDADE


Senhora dos  inquietos dias

que atravessas velada
a solidão dos tímidos,
a febre dos audazes,
a sede das searas.
Por ti, Senhora, pisamos
as sombras, sopramos
as cinzas, relembramos
a fricção das pedras
e o brilho do lume.
Por tua mão, Senhora,
resistimos aos cercos,
saltamos as devesas,
passamos a vau
os grossos rios.
Nomear-te, Senhora,
é acender janelas
na pequenez das casas,
folhas novas nos lenhos,
melros no aloendro.
Não nos deixes, Senhora
dos precipícios, da lonjura,
da explicação dos verbos,
madre das utopias,
filha nossa, caminho,
pão e semente,
aurora dos pobres.
Fica connosco, agora e sempre,
Liberdade.


Licínia Quitério

1.7.12

AQUI CHEGÁMOS


Aqui chegámos. A história à tiracolo,

a debitar reinados e vitórias e o destino
de um povo nobre e pobre por vontade 
de deus, ordem do rei e trabalho de bruxas.
Sólidas só as catedrais e as fragas reluzentes,
a disputar alturas com o olhar das águias.
Tudo o mais é líquido por aqui. Ondulação.
Salgueiro, seara, açude, cana verde, areal.
O linho, da semente ao fio, a amora, a seda.
O choro, o cante, a ladainha, o suor, o vinho.
Líquida a espera, líquida a tormenta.
Líquido o trinar das cordas, líquido o mar
por onde espreita o sonho, o atrevimento,
a inquietação, o medo, a teimosia. 
Um dia partiremos, dizemos, com a voz 
que se faz água e escorre e vai. 


Licínia Quitério

23.6.12

HÁ NO MAR UM LUGAR



Há  no mar um lugar que me pertence 
desde os meus tempos de alga envolta 
em espuma, nas cavernas mais fundas 
da inocência. Lugar de estrelas de alva, 
de cabeleiras de mulheres, perdidas na 
contagem das areias, de perfis de homens
buscando a rocha mãe. De luminárias
no dia antes das noites, dos lobos, 
das mortes. De castelos de vidro
na inquietação das mãos, no não saber 
da aresta viva, do golpe, do sangue. 
O lugar onde dormem as roupas velhas, 
as dúvidas, a serenidade dos meus olhos 
a acalmar tormentas.


Licínia Quitério

16.6.12

AS CIDADES


Passo a passo, pedra a pedra, casa a casa.
Desde a gruta, desde o bicho, desde a carne.
Assim se dizem as coisas. Assim se fazem as casas.
Assim se fecham as portas. Assim nos doem os dias.
Ombro a ombro, cara a cara, beijo a beijo.
Assim se fez o amor. Já não se faz o amor.
Resta a pedra sobre a pedra e a porta sempre fechada.
Cresce a erva, estala a cal, e o silêncio da ferrugem
é o sangue contra o sono. São os óxidos do tempo,
são as lágrimas viúvas, nevoeiros à desfilada
na garupa das cidades. Quase mortas as cidades.


Licínia Quitério

10.6.12

O PÓ


Há um tempo de subir as ruas, as árvores, 
as torres. Tempo de asas,  de respiros e 
suspiros, de pérolas na nuca. De desordem, 
desassossego, desapego. De corrida sem 
espora nem freio, de amor e desamor na 
mesma cama, de fome sem mesa, de mesa 
sem fome, de calor sempre. Subimos e 
tomamos rédeas invisíveis de cavalos 
brancos, de cavalos negros, de potros 
nunca amansados. É um galope sobre 
terras e águas, caminhos nesse tempo 
iguais, aprendidos nos manuais da vida 
quando aportámos ao cais do corpo,
ainda luminoso, quente. Um dia vem o 
pó e o cansaço amarra-nos os pulsos 
do desejo. Não nos reconhecemos nos 
espelhos e as palavras que dizemos não 
têm eco nas esferas. O esmorecer do 
fogo é um requiem pelo amor envelhecido 
nas escarpas violadas em silêncio, no 
avesso dos ventosno separar das águas. 
  
Licínia Quitério

2.6.12

OS SÍTIOS

Terra e mar são sítios que dizemos.
Outros há sem nome e sem morada - desertos
de onde as ervas fugiram, onde caiu a solidão
dos pássaros, o sal explodiu e o gelo não deu flor.
Há os meus próprios sítios. Ficam na distância
entre o perto e o longe, entre a corda e a amurada,
a inquietação e o sono. A casa, a rua, o largo.
Nomeio-os e sou eles, estou dentro deles.
Sou maior do que eles quando é verão e transpiro
e um lago verde me acrescenta os olhos.
Sou o frio das pedras nos dias da ruína, quando
todos os sítios empalidecem e desabam.
No sítio das mulheres estremeço e teço e parto,
com o cheiro do leite e do sangue nas costuras
da saia. Minha é a cidade onde sonho quando
os sítios escorrem de memória em memória e eu
não sei o número, a chave, a senha para os deter.
Há um sítio que dizemos céu, como dizemos
alto ou azul, em vez de nunca, em vez de morte.
É no sítio dos vivos que pensamos e, por ventura
ou condição, em desespero, amamos.

Licínia Quitério

24.5.12

O HÍFEN


Sentada no degrau. O abuso do sangue nos quartos interiores. O potro sem deus nem dono, a compasso, sem compasso. Intenso e doce. Assim ela. Sumo de amoras bravas, trovoada de maio, lago de rosas, rocha mãe de areias. Desobediência, desmedida, desnorte. Arma, alvo e seta. Substantivo incomum, verbo em trânsito, conjunção inconsequente. O degrau e as mãos sobre a mesa. Cravos, café, vinho, vício, tudo. O potro verde sobre as águas, o relâmpago no copo, as mãos. O turbilhão, o balão da aurora, os minutos da febre, a pele do sofá, no sofá. O vidro, o verde, o verde. O véu da tarde, o silêncio e a pedra. O degrau, o potro, a vertigem. O hífen. A ausência do hífen -.


Licínia Quitério   

16.5.12

À FLOR DAS ÁGUAS


São os dias do cerco. A cidade

ajoelha. Os deuses preparam 

a combustão das matas.

Os estrangeiros recuperam

as palavras guardadas sob os catres 

e aprontam as vestes da partida. 

Sem resistir, a cidade adormece. 

Um jovem abeira-se do cais. 

Nas mãos fechadas, uma música 

de estrelas. Nada pode contra 

o silêncio das muralhas. Avança

e uma névoa cresce à flor das águas.


Licínia Quitério

9.5.12

PARTO


Parto para lugares 

onde nada mudou 

Vou na correnteza das palavras 

na transparência dos olhos de água 

no músculo do braço a soçobrar 

no sopro do segredo 

no fervilhar do lodo 

na constância do medo 

na antecipação da memória

na exaltação da tarde nas ruas apinhadas 

Dentro da manhã levo o lume e a cinza

de que a viagem se alimenta

Retorno à fonte à barca à ignorância

ao lugar sempre o mesmo

Ao poço 

à torre branca

ao  anjo de oiro


Licínia Quitério

4.5.12

ANTES




Mil vezes esta pedra, mil vezes este mar.  

Mil vezes aqui estive e mil vezes voltei. 

Saber de um tesouro que há de haver. 

Saber-lhe o brilho, o cheiro, a vastidão. 

E não saber. Uma janela entreaberta, 

um muro inacabado, um cabo por dobrar. 

No fio da inquietação, uma batida, 

um compasso de tempos muito antigos,

antes das grécias, dos dilúvios. Antes.


Licínia Quitério

28.4.12

OS FRUTOS


À chegada dos frutos percebem-se lâminas

de sol na fala trepidante das mulheres

Os homens afastam-se a calcorrear as ruas

e olham de soslaio o ventre tumefacto da terra

As crianças adejam nos corredores da infância

Adolescência é o nome desse tempo latejante

de maçãs verdes trincadas e abandonadas

no mármore à voracidade dos insetos

Quem vai beber na concha da memória

sabe como os frutos crescem rápidos 

nos caminhos  maternais da liberdade


Licínia Quitério

20.4.12

ESPERA UM POUCO


Espera um pouco eu sei

as águas estão frias 
e as vozes noturnas afligem 
as mãos de quem labuta
Os lobos choram porque
há homens a uivar
nas clareiras 
e um cheiro a peste
vem rondar as manadas
ondulantes submissas
Digo-te que esperes
Não te digo como
nem quando verás
soltar-se a corda
e começar a construção
Há de acender-se a madrugada
na escada do poema
Subirás do lodo
à margem do amor
Será a hora de amortalhar
o medo e a faca
o vidro e o veneno
Reinventar a cidade
é a tua tarefa
Não te esqueças de amarrar o barco


Licínia Quitério

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