28.10.25

FALAR DE MIM



Podes ficar tranquilo.
O temporal passou.
O telhado furou
e a chuva pingou
sobre a dor do meu ombro.
O pouco que dormi
foi sempre em faz de conta,
não fosse a ventania
levantar o colchão
onde se escondia
das mágoas o cordão.
A parede rachou,
mas foi bom porque eu pude
ver um céu que foi meu,
em forma de crescente.
Recusei aceitar a hora do poente
e fiz bem, porque assim
nunca tive o punhal
do dia no final
a remexer a ferida
a esfacelar a pomba,
guardada no meu peito.
Depois, foi só esperar
que o temporal se fosse,
já farto de afrontar-me
da pele até ao osso.

Podes ficar tranquilo.
O temporal já foi.
Eu sei que outros virão,
em formas de tufão,
de lágrimas, cansaços,
mas eu aperto os braços
e seguro os pedaços
que sobraram de mim.
Semicerrando os olhos,
liberto a dor dos ombros.
Compro um colchão de espuma
de sabão, do melhor.
Depois lá vou soprando
enquanto tiver força
e as bolas vão subindo,
de mil cores tingindo
o fio dos meus cabelos.

Podes ficar tranquilo.
Mais nenhum temporal
me pode causar mal.
Uma coisa te peço:
se souberes que morri,
se entenderes que mereço,
embrulha com cuidado,
num pano de brocado,
meus desejos de corça
que um dia galopou
e na praia, ao nascente,
agita-o com firmeza
até teres a certeza
de que nada lá dentro
escondido ficou.

Licínia Quitério
Inédito - Outubro de 2004

24.10.25

TEIA

A aranha tece a teia

No seu labor de carcereiro

A mosca toca os fios

Da frágil fortaleza

Aprende a imobilidade

Não percebeu a sedução

Da irradiante geometria

A aranha guarda o visco

Que nos ata nos mata

Somos apenas moscas


Licínia Quitério


 

22.10.25

ESTREMECE

 Estremece, a casa velha.

Vai soltando pedras.

Nem o musgo as sustem.

Outro o desenho da cal.

Fissuras vão abrindo

A porta ao esquecimento.

Na hora de tombar

Cumpre-se, a casa velha.


Licínia Quitério




25.9.25

A VASSOURA

 A vassoura, com sua haste altiva,

varria, que para isso vassoura foi criada.

Empunhada a preceito, que tudo tem de ter sua mestria,

varria o pó acumulado nas dobras dos degraus.

Cuidados de enfermeira, digamos maternais,

pouco usuais em tempos imperfeitos.

 

Quem dera ser degrau que alguém subisse

e fosse acumulando sombras pelos cantos.

Vassoura chegaria, que mesmo para ela tempo há,

e varreria, eficaz, por vezes a roçar uma carícia,

os restos que até lá fossem parar

para que degrau de pedra pessoa se sentisse.


Licínia Quitério

Mafra, Dezembro de 2005



24.9.25

VÍCIO

 Tenho o vício dos teus olhos

das tuas mãos em tremura

da tua boca de seda

escaldante como o carvão

na minha lareira acesa.

Da tua voz registada

no meu ouvido profundo.

Tenho o vício de te ver

em memórias de veludo

nas sementes espalhadas

pelas flores que não cuidei.

Tenho o vício de sentir

as dores que não rejeitei.

Tenho o vício de cheirar

campos  que não cultivei.

Tenho o vício de voltar

a caminhos que não pisei.

Tenho o vício de me rir

do choro que já chorei

e o vício da solidão

que me envolva de lembranças

das andanças que vivi.

Tenho o vício de escutar

segredos que me contaram

e aqueles que não contei.

Mais do que toda a virtude

é água pura a correr

o vício de te querer

sabendo que te não quero.


Licínia Quitério, 2006

23.9.25

AS MÃOS

 Para além de nós ficam as mãos.

Com elas percebemos e palpamos

e moldamos o ar que respiramos.

As carícias, mesmo as que não demos,

fazem das mãos a nossa eterna idade,

a nossa infância a tactear o mundo.

Com elas nos prendemos ou soltamos

e falamos mais fundo do que as vozes.

São as mãos que nos marcam a presença.

Talvez não mãos, mas asas ansiosas

sempre à espera do voo nas alturas.

Há belas mãos, inteiras, tão galantes,

mãos de príncipe a desbravar silvados,

sem se doerem inda que o sangue aflore.

Pelas mãos nos perdemos e achamos.

Onde elas chegam chega o nosso amor.

 

 Licínia Quitério, 2005

22.9.25

VIDA


gente que passa o tempo desvivido
vai ao supermercado ao fim da tarde
à prateleira de cima das virtudes
no corredor ao fundo da ilusão
vidas em chamas a ocultar a cinza
vidas em pastas com fechos de correr
que por vezes se encravam no embaraço
de mostrar da folha em branco a decepção
vidas de gente que cruza a nossa vida
e nela entra e sai sem lhe darmos guarida
perdidos que estamos na procura dos fios
a embrulhar mais dias e mais vidas

Licínia Quitério, 2006

AJUDA

 Alguém pediu ajuda.

Ou foi o murmurar da água do ribeiro?

Ou o rumorejar das hastes do salgueiro?

Ou o cão a pisar folhas mortas de Outono?

É um choro de criança ao abandono?

É o lamento de um pobre esfomeado?

É a raiva do peixe picado pelo anzol?

É mulher a parir desamparada?

É um andar peregrino?

Uma onda de mar que se perdeu do sal?

Um pássaro do norte que se perdeu ao sul?

Um abraço sem força que se perdeu do amor?

Uma palavra solta que perdeu o sentido?

Uma saudade do amigo distante?

Uma dor sem remédio?

Uma flor despedida pelo vento do jardim?

Um sorriso sem rosto onde possa habitar?

Uma voz desgarrada sem saber ecoar?

Alguém pediu ajuda.

Ou foi no meu ouvido o sangue a latejar?

Melhor partir, dormir ou fingir ignorar.


Licínia Quitério

 Mafra, Fevereiro de 2006

 

29.8.25

O MAR

o mar embraveceu alevantou-se

emudecemos escutamos

percebemos a dimensão da vida

em tempo de procela

Licínia Quitério

25.8.25

UMA LEMBRANÇA


Eu sei que devia falar
do relevo da cal
da agonia das nuvens grávidas de céu
do rolar do medo no olhar dos pombos
da gente nos terraços respirando a tarde

Mas prefiro dizer
da luz duma lembrança
que o mundo clareou como se a madrugada
na fundura do dia aprisionada
por mim se libertasse esquecida de morrer

Licínia Quitério



24.8.25

OS PAVõES

 

era outro o tempo
de darmos as mãos
no recorte sombreado das tílias

o fragor do leque dos pavões
abalando a moleza da tarde
no desalinho dos sentidos

chorávamos abraçados
na dança dos pavões
ou tombávamos ébrios
porque as tílias estavam em flor

Licínia Quitério



20.8.25

O FOGO


A terra está dorida de chamas.
Adormece sob o manto escuro da tormenta.
Os homens vigiam-lhe a quentura.
Não sabem quando virá um clarão desafiar a noite.
São os dias da aflição do verde.
É o tempo do pássaro de fogo.

Licínia Quitério

25.7.25

NOVO LIVRO

 


26.5.25

A COTOVIA

 Estava escuro. 

Era inverno e os abutres nos penhascos aguardavam a morte dos cervos.

Temiam que as andorinhas da primavera interrompessem o manjar de sangue vivo em corpo morto. 

Foi longo aquele inverno e os abutres cuidavam de quebrar os ovos das andorinhas, antes que os filhos eclodissem em Abril.

Foi longo o Abril da regeneração dos ninhos, da fuga dos abutres, das correrias dos cervos, dos trigos amadurecidos por mãos quase loucas de esperar.

Escureceu o Maio e as searas curvam-se ao vento e rumorejam, num mar de sobressaltos. 

Avistaram pássaros negros, filhos espúrios dos abutres, em voos silenciosos, a ensaiarem a rapina.

Há um canto longe, um grito, um aviso no cimo dos penhascos: 

- Escutem o canto da cotovia.

Licínia Quitério


 

23.5.25

O VAGABUNDO

Caminha lesto o vagabundo,
à procura da origem de seus males.
Acossado pelos lobos,
ignorado pelos reis.
Tem encontro marcado,
anunciado pelo bater do coração.
Os olhos navegam pelas pedras
que sabe serem estrelas.
Por vezes pega numa, guarda-a no bolso
e o casacão curva-se desabado.
Vem do sítio dos loucos deserdados,
com montanhas de jade e de ternuras.
Pela boca falam vozes comandantes:
Agora vai, agora ama, agora mata.
Só não pode parar o vagabundo.
A urgência de chegar não o permite.
As mãos morenas afastam sombras
- intrusos a impedir o progresso
do corpo já cansado.
Se desatento, tropeça num coral, numa romã,
demónios mascarados de natura.
Mas logo se endireita e continua.
Quando parar, será de supetão.
As vozes deixarão de o incitar,
as estrelas no casaco o brilho perderão.
E lenta, lentamente, seu corpo vergará
até ao chão.
Pela primeira vez, verá os muros do castelo.
Ilusão ou verdade? Não lhe interessa.
Já não pobre, não louco. Apenas corpo.
Até que os reis e os lobos apareçam.


Licínia Quitério


18.5.25

IGNORÂNCIA

 Se não sabeis da minha sede

porque me mostrais água?

Se não entendeis o meu frio

porque me dais roupa?

São tão altas as minhas montanhas

e vós falais dos degraus lá de casa.

Eu não canto vós sabeis

então porque imitais a minha voz?

Só me serve este ínfimo quarto

onde guardo o meu cofre

que julgais cheio.

Ignorais o nada com que o encho.


Licínia Quitério

1.5.25

ENREDADA


Presa estou no verde da cidreira,
na sanguínea do bago da romã,
na coroa de céu do agapanto,
na seda do lírio, no linho,
da semente ao lençol,
do lençol à lenda de esponsais,
na noite da coruja,
no rouxinol do imperador,
na crueldade dos impérios,
no amarelecer da pele,
no rosado do pêssego.
Enredada estou na quadrícula
das sílabas, no ardil das palavras,
no labirinto dos poemas
de todos os poetas
de todos os tempos,
no cansaço das dúvidas,
do clamor das servidões,
da lentidão das utopias.
Presa e enredada estou
na soberba vontade de saber
a carne do infinito.

Licínia Quitério

29.4.25

O SETE ESTRELO

 Olha o Sete Estrelo.

Acena-te na cintilação dos sete irmãos.

Há quem lhe dê geométrica definição.

Há quem desenhe animais, na compulsão de povoar o céu.

Lá estão o corpo, a cauda, as patas de bicho maior.

Sete estrelas, sete tentações, sete luzeiros a adornar a eternidade.

Fecha a respiração, abre rasgões na noite, adia o sono e a lassidão.

Verás a pequenez da tua mão.


Licínia Quitério

UM CORPO


Um corpo assim complexo
só pode ser um desafio
à eternidade e afinal
uma pequena oscilação,
um ínfimo deslize,
uma desatenção,
podem ser a explosão,
o fim da crise

26.3.25

SÂO ASSIM

São assim as mulheres
Calíopes, Cassandras
Pelo tempo dos tempos
Outros nomes tomando
Outros cabelos, outros rostos
Doces e amargas
Sibilas e cerejas
Caçadoras, tecedeiras
Encantadoras e encantadas
Mulheres-serpentes
Mulheres-sereias
Mulheres-mães
Mulheres-filhas
Cantoras nas alturas
Chorosas e risonhas
Perversas amantes
Viúvas eternas
Julietas, Colombinas
Asseadas Marias
Não te demores Maria
Deixa o homem Maria
São todas assim
Mulheres-gregas
Mulheres-etíopes
Mulheres da França

Mães de Tebas
Enigmas por decifrar


Licínia Quitério



17.3.25

O VELHO INVERNO

 O fim de um tempo, o princípio de outro, na roda do ano, na roda dos anos.

O Inverno prepara as despedidas, inquieto.

Nos homens, um desacerto, entre o frio e o calor, entre a tempestade e a calmaria.

Cheio de manhas, o velho Inverno.

O musgo não desiste dos muros, os braços das árvores continuam despidos, o frio açoita-nos os ossos.

Olhamos em redor e percebemos sinais de boa nova.

As primeiras flores, os pássaros novos, são anúncios da mudança.

Vamos somando Invernos, os corações disponíveis para as Primaveras.

Na roda da Vida vamos.


Licínia Quitério


14.3.25

OS POEMAS

 Os poemas vão

no seu destino de pássaros. 

Ganham alturas, ventos de feição

algumas lágrimas de nuvem

remoinhos, acalmias

novos ímpetos, arrojos

ternuras envergonhadas

sinais de lume, olhos de lince,

lonjuras, lonjuras

música, música.

Descobrem mundos

aquém e além dos astros. 

Hão-de ser tudo, nada.

Eu fico.


Licínia Quitério


11.3.25

HÁ CASAS

 Há casas que existem porque um dia dissemos: 

Olha ali uma casa.

Se voltarmos ao lugar, diremos: 

Ali houve uma casa.

Um dia diremos: 

Há casas que só existem enquanto as olharmos.

Licínia Quitério

1.3.25

GENTE


Essa gente que eu amei
teve o seu tempo de acabar a história
de fechar o livro
de encostar a porta devagarinho
de balbuciar a primeira palavra aprendida
de fazer-se fumo e depois nuvem
Essa gente que eu amei
habita agora os meus sítios
as minhas horas
os meus passos em volta
as gotas de chuva nos vidros da janela

Foi o amor dessa gente
que me deu a garra de trepar
a corda de amarrar
e continuar na senda dos dias
como se fosse rocha
ou pena ao vento
a sussurrar os nomes
dessa gente que eu amei

Licínia Quitério

20.2.25

A ESTRADA

 Tantos dias há em tantos anos.

Tantas vontades de desistir ou persistir.

Assim o tempo dos vivos.

Não esquecer os nomes dos outros 

que são resguardo, inspiração, 

por vezes inquietude, assombração, 

por vezes pedra, derrocada.

Em permanência, a estrada.


Licínia Quitério 


7.2.25

CAMINHOS

 Não me perguntem como é que aqui cheguei

Vou falando de tudo e de nada que encontrei
Do garoto que me pediu dinheiro para tapar a fome
E do homem que o mandou embora
Uma praga estes malandros
O que eles querem sei eu
Da rapariga que me contou o seu amor acabado
O que me ficou foi o jeito dela
A afastar o cabelo para trás da orelha
Para melhor ouvir a voz dele que continuava
A soar a magoar
Não insistas é melhor assim

Vim por caminhos antigos
Com cheiros de ervas boas
Onde nunca mais voltei
Se falo deles dizem que os inventei
Que por lá nunca passei
Esta minha mania de contar histórias
A ouvintes amargos e descrentes
Outros longos tortuosos caminhos
Percorri e fui guardando
Lembrança das viagens e dos viajantes
Meus estranhos companheiros
Em encontros fortuitos
De linguagens ínsipidas
Gostei de te conhecer
Um dia voltaremos a falar

Não posso saber o que aconteceu
No mundo em mim
Em todo o tempo que fiz caminhos
E conheci caminheiros
Esquecida da linha de partida
Vou decorando nomes de estações

Licínia Quitério

arquivo

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