20.11.24

A MONTANHA

Conseguiste subir a montanha de jade

Eu fiquei cá em baixo os pés na areia

O medo fechado na cintura

Não fosses deslizar na verdura da pedra

E cair

E eu sem me mover a afundar-me na quentura

Os olhos presos na tua hora de triunfo

Vamos ficar assim

A cada um seu grito ou sua lágrima

Sua altura ou planura

A montanha é só a montanha

O teu triunfo é a minha aflição

Se tombares

Será no colo do meu medo

Ainda que me afunde

Um pouco mais um pouco mais


Licínia Quitério


 

 

31.10.24

O CHÁ

Insinuam-se nas frestas, trazem aromas de chá e avistamos a espuma a receber-lhe o fio de quentura, a encher a taça, a oferecer-se à mão, à boca, ao corpo, à tessitura do sol nas paredes da tarde. 

É a hora dos relógios, da areia, da água, das árvores sobrantes, dos véus da cor do chá, do arremedo das danças, dos medos, das preces, do calor dos corpos, do calor do chá, do ardor da memória, da febre dos animais, do tremor da grande pedra, do aroma do sangue. 

Na taça, o chá esfriou.


Licínia Quitério


16.10.24

O LUGAR


Bonito é o lugar
Em forma de sossego
Pequeno limpo o lugar

Uma sala aberta à alegria
Uma varanda sobre um mar antigo
Um banco de jardim olhando o vale
Um corpo outro corpo
Uma voz lá ao longe
Um segredo a guardar
Discreto tímido
À espera de existir
O lugar



Licínia Quitério

 

8.10.24

CORAÇÃO

 Pousamos

o coração na mesa dos anos repetentes

 

Perguntamos

porque bates se nunca mais cobriste  

o chão de frio do grande inverno

 

Repegamos

a cor das velhas dores

num teatro de espantos e silêncios

 

Representamos

a comédia que somos

bem ao largo de nós

na ilusão de um invicto perpétuo coração



 Licínia Quitério

2.10.24

O FUMO

Pássaros cegos

carregados de pólvora

sulcam os céus

 

Palavras encharcadas de guerra

sem alfabeto original

sem gramática

rebentam à boca dos generais

 

Nos dias envenenados 

mulheres mudas caminham

homens sobrantes seguem-nas

e vão entoando um estranho canto 

nascido da dor e do fumo


Licínia Quitério


23.9.24

O BOSQUE

 Verde o bosque que passeámos.

Tudo tínhamos

do chá de menta à varanda do estio

de Jacques Brel ao grito dos pavões

das tuas palavras claras aos meus versos infantes.

A verdura dava-nos o sorriso de mãe

e o abraço de amante.

Tínhamos o nome do bosque

inscrito na palma da mão.

Estávamos a salvo dos salteadores de futuro.

 

Foi depois do incêndio

que percebemos a cor do desalento.

O chá de menta amargou

e tudo ardeu

as tuas palavras claras e os meus versos infantes.

A verdura fez-se noite

mas o nome do bosque continua 

na palma da minha mão.

 

Licínia Quitério 


15.9.24

A VARANDA

 

Uma varanda ou peito de pomba

observa a intenção do vento

divisa o longe que humanos não alcançam

Só o céu conhece a hora exacta da largada

antes que a noite venha e a pomba se confunda

com  o peito imóvel da varanda


Licínia Quitério

8.9.24

BALADA

 

a gente passa

a água cai

e eu a ver

sem perceber

que tempo faz

que hora é

há um desacerto

há um engano

há um enredo

e a gente passa

e eu a ver

e a água cai

há uma balada

há uma toada

há uma batida

rente à janela

passa apressado

um coração

e eu sem ver

sem perceber

que a vida vem

que a chuva cai

que a vida vai


Licínia Quitério


 

27.8.24

ROSA

Foi quando disse rosa

que te fizeste flor.

Tivesse eu dito casa

serias o olhar

mais alto da cidade.

Tivesse eu dito amor

serias o meu corpo

junto ao mar.

Licínia Quitério


23.8.24

A GENTE SABE LÁ

 A gente sabe lá de que é que falam

Aquelas duas mulheres

Nem novas nem velhas

Nem bonitas nem feias

Duas mulheres só isso

Cada uma a carregar um saco

Cada uma a carregar uma verdade

Cada uma a pesar a verdade da outra

Verdades não são coisas para ouvir

São para dar numa mão fechada

À outra mão que não a sabe abrir

As duas mulheres não são novas nem velhas

As vidas das mulheres não são bonitas nem feias

São vidas só isso

Que as mulheres carregam nos sacos

A embrulhar o pão de cada dia

E  falam as mulheres falam

E o pão nos sacos endurece

E mais endurece a vida

Verdade se diga

Que é disso que as mulheres não falam


Licínia Quitério

20.8.24

ESSA GENTE

Essa gente que eu amei
teve o seu tempo de acabar a história
de fechar o livro
de encostar a porta devagarinho
de balbuciar a primeira palavra aprendida
de se fazer fumo e depois nuvem
Essa gente que eu amei
habita agora os meus sítios
as minhas horas
os meus passos em volta
as gotas de chuva nos vidros da janela

Licínia Quitério

14.8.24

ACREDITO

 Dizes que me percebes

e eu acredito

Também acredito nos deuses

e nos seus mensageiros

e nos seus inimigos

e nos seus obedientes seguidores

Acredito porque nunca os vi

afagar palavras que escrevo

rir desbragados das verdades

que dispo e atiro ao vento

Não nunca os vi chorar

no mesmo acorde do meu riso nocturno

nem sorrir por lhes falar

de amor perdido e encontrado

Acredito nos deuses e acredito em ti

todos tão distantes

tão sem graça

quando percebem tudo o que eu não sou


Licínia Quitério


12.8.24

MUDANÇA

Podia não ter acontecido

e tudo seria exactamente igual

A vida continuava a somar anos

e saudades

As portas da casa haviam de chiar

nos gonzos

de manhã ao acordar e à noite

depois da lua ter passado

sobre o muro do quintal

Tudo exactamente igual

como se alguma coisa tivesse acontecido

O prato na mesa o cabide no armário

o livro aberto a envelhecer memórias

A lágrima presa por teimosia

até ao dia da torrente

Tudo como antes de nada ter acontecido

de não ser mais que uma vontade

peregrina de mudança


Licínia Quitério


9.8.24

OS POEMAS

Em voo planado, a ganhar alturas,

ventos de feição, algumas lágrimas de nuvem,

remoinhos, acalmias,

novos ímpetos, arrojos,

ternuras envergonhadas,

sinais de lume, olhos de lince,

lonjuras, lonjuras, música, música,

mundos, aquém e além dos astros,

tudo, nada.

Os poemas, no seu destino de pássaros.

Licínia Quitério


5.8.24

OS ANOS

 Atravessar os anos sem contar

a não ser nas horas de choro

nascidas nas pedras afiadas

pelos caminhantes da fortuna

ou nos dias de tédio

aprisionados pela bruma

que não morreu de madrugada

Mais longos os anos  

Mais breve o anúncio de horizonte

As velas ardem a alumiar a  estrada

da água que desistiu dos cântaros

No novelo dos anos por contar

o vento tece mantas

de aconchego e perdição


Licínia Quitério


27.7.24

A CIDADE

 Juro que era cinzenta quando a conheci

a cidade


Toda de pedra

geométrica tão geométrica

feita para eu me perder

na volta duma quadrícula

O rio fazia o seu desenho e seguia

indiferente à exactidão da cidade

Quase sempre cinzento

o rio

a não ser num único poente

em que o encontrei distraído a colar escamas de luz

nas pontes

Amei a cidade cinzenta

Voltei e voltei à cidade cinzenta

até deixar de ter medo de me perder

na geometria

Sempre encontros marquei na tal hora do poente

quando o rio se distrai por me ver e acende

a água

e desenha nas pontes meias luas

Agora quando penso na cidade

sei que cinzento é a cor das cidades que amamos

quando pela primeira vez as visitamos

Para não me repetir passei a dizer pessoas e não cidades

Licínia Quitério

26.7.24

A VOZ

 No cofre, no silo, na garganta

Junto ao ouro, à corda,  ao grão

Desde a mina, o campo, o sangue

Depois da dor, do golpe, do ciúme

Antes  do brilho, do tremor, do vibrato

Em tudo e nada e nunca e sempre

Aquela voz acontece

E diz o nome, a data, a rua

E a certeza do silêncio

Tudo o que nos deixa é a lembrança

De um tempo ameno

De um lugar seguro

De um som inominável

Se a voz  aconteceu  há de voltar


Licínia Quitério

 

 

6.7.24

DA VOZ

 Do nome a vogal dominante

nada mais

Do rosto o contorno

interrompido aqui e ali

como se sombra de gigante o procurasse

Do corpo o vulto em movimento

que pouco importa para a vida do retrato

Ficou a voz macia e clara

aquém do esquecimento

dizendo chamando

em permanência vogando

procurando o eco



Licínia Quitério

 

2.7.24

CRESCER

 

Crescer

é o que faz a semente

a prometer o gérmen

que há de crescer até ser corpo

ansioso por crescer

e lhe chamarem vegetal em água ou terra firme

ou animal em água ou terra firme

quem sabe será árvore

quem sabe será gente

quem for trará consigo a marca

o signo o som a luz e tudo o mais

que fez crescer a semente

até ser animal

até ser gente

até voltar a ser a terra a água

ou a bola de cristal duma qualquer vidente


Licínia Quitério

27.6.24

CONVITE

 


A ESTRADA

 Se fosse assim

gostoso como beijo

de amor maior que a estrada

inda que pedregosa a estrada

mas orgulhosa a estrada

das ervas a espiarem os passantes

apressados os passantes

absortos os passantes

ansiosos do fim

que só verão depois da curva

apertada a curva

mal desenhada a curva.

Se fosse assim gostoso

o caminhar de sombra em sombra

o beijo ainda acima da vontade

de o lembrar

antes de ter nascido

depois de ter nascido

igualzinho ao que foi

sem nunca ter nascido.

Será assim depois da curva

por entre a sombra

a estrada

ainda a estrada.


Licínia Quitério

 

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