26.2.10

AS DOCES MÃOS DA INFÂNCIA

As doces mãos da infância
subitamente afloram
o tecido enrugado
do dia a desmaiar.
Trazem consigo a tremura
das bolas de sabão
a crescer, a crescer, a voar.
E o nosso corpo freme a assomar
à janela do tempo que foi
mais que perfeito,
assim dizemos.
Não nos pertencem
as doces mãos da infância.
Cavalgam nuvens coloridas,
nadam em águas claras,
colhem flores e risadas
e canções de embalar.
Por vezes voltam,
num relâmpago,
a iluminar o nosso quarto escuro.
Por vezes não são mais
do que a ternura
que presssentimos
no dia a desmaiar.

Licínia Quitério

19.2.10

RUÍNAS



Na vila velha, a casa velha,
ou as veias nas fendas onde correm
trepadeiras de campainhas azuis
que sempre voltam com as andorinhas,
ou os gatos invisíveis nos parapeitos,
a lamberem feridas inventadas,
ou os restos teimosos da tinta verde
nas paredes da sala de jantar,
ou o frio respirar das lagartixas no beiral.

Lá dentro, uma tosse miúda, persistente,
ou um ranger de portas empenadas
ou os talheres a tilintar na mesa,
a abafar suspiros censurados,
ou os gritos do medo pelo escuro
ou tão só o piar do velho mocho
ou as correrias das crianças:
não me apanhas, não me apanhas…

Ali a casa ainda habitada
a alimentar ruínas.

Licínia Quitério  "Da Memória dos Sentidos"

12.2.10

O MAR IMENSO, DIZIA



O mar imenso, dizia,
como se dissesse sede de viagens.
A leveza das aves, dizia,
se o ar não se detinha no cálice das  mãos.
As pedras robustas, dizia,
quando não sabia das areias 
movediças, no jardim da casa. 
Nos umbrais das esperas,
os frutos maduraram,
as crianças cresceram.
Já era velha a tarde 
quando a estrada lhe pegou os passos, 
duas gotas de orvalho nos cabelos,
uma lua de prata presa ao peito. 
Foi a hora de aprender com as cigarras
o ofício de cantar a vastidão dos campos
e o breve breve tempo do Verão.

Licínia Quitério 

3.2.10

QUANDO A SOMBRA



Quando a sombra se adensa  nos degraus da tarde,
na polpa dos dedos há rumores de sangue,
lamentos de mendigos  nas ramadas altas 
e um vento branco na floresta de preces maternais.
  
A ternura,  um dócil animal no limiar do sono, 
ensina aos homens a canção da terra, dolente, 
augúrio de feitiços no ritmo da noite.

Assim todos os dias, a aprendizagem das sombras,
na travessia do grande chão silencioso.

Licínia Quitério

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