28.8.10

COM UMA ROSA

Com uma rosa na mão
ou a rosa o tinha assim despido
de queimas ou de espinhos.
A rosa se fez mão e acenou,
tal o homem inteiro
no campo aberto ao sol.
E os insectos a procurar a rosa.
Rosa-não. Rosa-mão.
Um homem livre e bom
Sabia agora o preço do amor.
Sentira a rosa, a mão,
declarara aos insectos:
Rosa-não. Rosa-mão. 
Um dia entenderá
da Natureza a gratidão.

Licínia Quitério

25.8.10

PEDI UM NOME


Pedi um nome, ou uma rua,
ou uma aldeia, ou um país,
ou um continente, ou um planeta
mesmo pequeno, do tamanho da lua.
Todos os nomes tinham sido dados,
a rua era só uma e tinha dono,
aldeias se as havia só desertas,
um país era coisa de pouco durar,
um continente, sem guerras nem vulcões,
difícil de encontrar.
Sem ser a lua qualquer planeta poderia ter.

Deram-me um mapa,
fui seguindo as manchas,
cor a cor vivendo.

Para tão vasto mundo eu só pedi um nome.
E não mo deram. 

Licínia Quitério

19.8.10

PAISAGEM SEM BARCOS


Há uma hora em que todos
se vão embora do retrato.
Ficamos sós, senhores do nada,  
acreditando em tudo. 
No silêncio do mundo
evaporam-se as águas
e uma bruma de rendas
desfoca contornos vegetais.
Se guerras houve por ali
e assassinos a soldo
e a loucura invadiu a cidade,
tudo se esvai naquela hora.
Ficamos nós e as brancas mãos
e os cabelos de fogo
e as lágrimas antigas
dos olhos das fadas
esperando eternamente
o tempo de chorar.
Sob as brumas ou cinzas,
tanto faz, um barco há-de
surgir, com gente dentro,
a remar devagar, reconstruindo
um tempo de beijar.

Licínia Quitério

7.8.10

VOLTAR


Uma aflição, uma corda de baloiço prestes a rebentar, os cachos das glicínias longe daquela mão, os olhos a lavarem-se no rio, assim serpenteando, debruçados na varanda que o tempo não levou. 
Uma dor sem lugar, a pairar, a espiar o vinho cor de sangue e o copo antigo e o corpo antigo e a varanda e a beleza cruel de tão intensa a calar a palavra, a suspender o gesto. 
A lua, cor do fogo, por entre os ombros da distância, subindo, enorme, lanternim da noite, balão liberto do cordel, senhora das penumbras, alumiando passos caminheiros que o dia pôs na serra e se perderam.
Voltar é esta força de calar os vidros sob os trilhos, ouvir os risos nas escadas e o chiar das portas e o saltar da rolha da garrafa.
Voltar é brindar, a mão a mesma, o copo igual, o vinho cor de sangue, a estilhaçar o inquebrável coração.
É preciso voltar dos ombros da distância, ser fogaréu na noite, chamar-se lua e subir e subir até ao fim da dor, até ao novo dia.



Licínia Quitério  

2.8.10

VERDE


Não fora o verde e o nosso olhar não saberia
da dimensão do dia, da sua fúria ou calmaria, 
da serena ou inquieta voz da madrugada, 
da espessura ou liquidez do céu que a noite traz.
Verde a persistência da trave e do beiral
da casa nunca feita mesmo quando habitada,
do arco ou do lintel tempos depois do fogo.
No verde os pássaros se amam e compõem o canto
e a lagarta verde é o destino do verde que tragou.
Quando o sol quer o verde é também oiro
e a lua  derrama sobre o verde a poalha de prata.
Verde é a alegria de todas as infâncias
por muito que o deserto as tente ressequir, escurecer.
Serão verdes os sonhos de quem nunca encontrou
a loucura, a quentura, a ternura maior que dizemos amor.
O verde é a frescura do caminho de quem sabe correr
preso a raízes, o tronco erecto, multiplicando folhas,
pintando cachos de uvas, verdes ainda, infantes,
maduras amanhã, falantes sempre do verde que as criou.

Licínia Quitério

Para a M., companheiras que somos de verdura e madureza. 

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