Vincent Van Gogh - Noite Estrelada
NOCTURNO
Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...
Era, no copo, além do gin, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste Verão.
Era, no gira-discos, o "Martírio
de São Sebastião", de Débussy...
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a suspeita de ficar sem ti.
Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, também, um choro de criança...
DAVID MOURÃO-FERREIRA
É de noite e pelas paredes da casa escorrem sombras, a iludir as formas, a engordar volumes.
Ela é Alice e olha o gato enroscado no colo.
As flores na jarra secaram, mas a lembrança do orvalho dá à noite um cheiro líquido. Os livros dormem e alimentam a avidez das traças.
De longe, chega o lamento uivante de alguém que se perdeu e não voltou a casa.
É de noite que chora. Não grita, não soluça. Só lágrimas a lavar a máscara do dia.
De noite escreve. Sem endereço, que o mensageiro é a própria noite, sabedora de destinos por cumprir.
Licínia Quitério