30.4.08

MAIOS


Salta fora da caminha p'ra que o Maio não possa entrar. A minha velha vizinha não se chega a levantar. Cantavam as vozes da rádio. Eu não entendia, mas trauteava.

Estás amarela. Deixaste entrar o Maio. Ralhava a avó, zeladora da continuidade dos temores ancestrais.

Para a semana vou a Lisboa ter com uns amigos. Avisava o pai, sem dizer no primeiro de Maio. A mãe suspirava e traçava um nervoso discreto no cós da saia.

Os estudantes tomaram a Sorbonne. Os operários tomaram as fábricas. O coração da Europa batia forte. Cheguei tarde. A polícia já limpara as ruas, mas senti o cheiro do novo Maio.

O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido! Nunca o choro e o riso se tinham encontrado para cavalgarem o rio colossal da liberdade. Estive lá.

Amanhã vou a Lisboa ter com uns amigos. Festejar o Primeiro de Maio. Digo isto bem alto. Ouvem-me?


Licínia Quitério

23.4.08

É ABRIL

Foi quando Abril chegou que encetei a subida da nova encosta. Lembro-me bem das lágrimas de meu pai que enfim podia chorar como só chora um homem a quem obrigaram a calar meio século de vida. Lembro-me dos abraços aos amigos enquanto gritávamos na praça pública: Cairam! Eles cairam! Lembro-me de um certo olhar que com o meu para sempre se cruzou, na luz baça duma sala em que por fim se soltavam histórias de nada ter e de muito querer.

Tem sido uma encosta íngreme. De muitas flores e de muitas pedras.

Hoje leio as notícias e estremeço. Lucros com muitos zeros à direita, reformas opulentas. Os sem casa, os sem emprego, os sem saúde, os velhos, muitos velhos. Os sem esperança, os sem voz, os com medo, os com fome. Os arrogantes, os rastejantes, os pedintes. Também os sonhadores e os limpos e os que falam verdade e os que não vendem nem compram porque só sabem dar.

Sou feita de muito Abril. Quase cheguei ao cimo da encosta.

Vou ainda envolver-me na lembrança do clarão das ruas e dos risos, suavemente deslizar pelo dia e afagar um cravo cor de sangue e glória.

Um terno abraço, Companheiros!


Licínia Quitério

17.4.08

UM HOMEM
















Com quantos golpes
se constrói um homem?
Do adamastor ao santo
quanta palpitação
até ao rebentar
das veias sob a pedra?
Quantas lâminas
para rasgar o oval
deserto e branco
do átrio do olhar?
De quantas cores se tinge
o pano de emoções
com que se forra o berço,
com que se apaga a chama?
Incontáveis os gritos
soltos em cada poro
até se abrir o ventre
à flor da claridade.
Da aridez da terra
um vulto de homem nasce.
Por ele se engrandece
uma casa do céu.


Licínia Quitério

8.4.08

ANDANTE




foto de J. Abel







Vem da noite insone das copas. Esquecido do fantasma das décadas nos ombros, assombrado pela poalha de esmeraldas na paisagem, segue o trilho dos eternos caminheiros. Uma casa ao longe, uma porta aberta, uma presença. Ainda não - este o seu grito na manhã. Com uma garra no peito, aguarda o eco. Um dia, quando a porta da casa se fechar, não saberá ouvi-lo. Hoje, modulados numa estranha harmonia, os sons regressam. Continua, com um sorriso líquido nos olhos. Vai riscando o cinzento das bermas com a cor sanguínea dos cabelos da urze quase seca.

Licínia Quitério

1.4.08

UMA ROSA


"Caminhava com uma rosa ao ombro." - Foi o que disse quando a detiveram atrapalhando o trânsito, no alinhavo branco da avenida, e lhe atiraram um porquê.
"Bem pesado, o saco à tiracolo. Bem leve, o cheiro da rosa." - Isto disse o autuante. Só ela ouviu.

Licínia Quitério

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