28.12.06

ANO NOVO



O POETA BEBE A LUZ
E INCENDEIA AS PEDRAS
NO SEU PEITO
O ANO É SEMPRE NOVO


Para todos os que durante o ano que está a findar visitaram este blog, mesmo sem o comentarem, vai o meu veemente agradecimento. Tenho aqui posto as palavras que sei dizer. Muito para além das minhas expectativas, tenho encontrado eco em leitores generosos e sabedores que me incentivam a continuar. Bem hajam, Amigos!
Um Novo Ano de claridade e esperança para todos.

Licínia Quitério

18.12.06

O CIRCO

Círculo de Cor, de August Macke

Desta vez é que vou
encontrar o lugar
que possa partilhar
com a pomba e o leão,
o camelo e o cão,
a menina bonita
de doirado despida,
o cavalo a correr
e a menina a aprender.

Senhoras e Senhores,
público respeitável,
vamos todos viver,
numa noite notável,
o maior, o maior
espectáculo visto.

Chapéu de sol e estrelas,
muita cor, muita luz.
Os bancos são de pau,
a música não para
e nesta grande nau,
redonda como o sonho
de todas as infâncias,
o coração aquece
e nós temos os olhos
e os ouvidos atentos
a tudo o que acontece.

Aqui não há distâncias
entre nós e o palhaço
que tropeça, tropeça,
sem chegar a cair
e que chora em repuxo,
a fingir, a fingir.
E os miúdos a rir
e os graúdos a rir.

Desta vez é que vou.
Vou partir com o circo.
Vou tocar o trompete,
vou vender chiclete.
Pinto as unhas de verde,
calço as botas de cano
com que sempre sonhei,
ajudo a desdobrar
o tapete do mágico
com que vai ocultar
a hora de cortar
a mulher deslumbrante
em três partes distintas.
E o público a pensar:
se algo correr mal,
como é, coitadita,
quem a vai consertar?
E eu por dentro de tudo
a saber como é.

Desta vez é que foi.
Já tenho o meu lugar
neste mundo em viagem,
bem dentro da miragem
que só tem uma margem:
a do lado de lá,
onde a pomba e o leão,
o camelo e o cão,
conhecem a Mimi
a trepar pela corda
e a acenar com um lenço,
e o palhaço que chora,
e o menino que ri,
e a menina bonita
no cavalo a correr.

Fui com o circo de vez.
Quando me anunciar,
o homem do turbante
vai dizer como faço
um número importante:
“Se subir é difícil
descer é bem pior!”
E o rufo do tambor
a engrossar o tremor
nos assentos de pau,
nos remendos da nau
que amanhã partirá
p’lo mundo, onde haverá
sempre alguém a dizer:
(baixinho é bem de ver
não vá alguém ouvir)
Vou partir com o circo,
desta vez é que vou,
ninguém me irá deter.

É entrar, é entrar,
meus senhores, é entrar!
O maior, o maior
espectáculo visto
não tarda a começar!!


Num registo um pouco diferente do habitual, hoje convido-vos para uma ida ao circo. O maior espectáculo do mundo anda por aí. Se eu demorar um pouco mais, não se assustem. Talvez me tenham passado a chamar Mimi. Por uns tempos. Só por uns tempos. Entretanto, que a Magia vos acompanhe.

Licínia Quitério

12.12.06

RETIROS


Sentir
a doce primavera

no abandono da parede nua.

Saborear nos frutos

o segredo da lua.

Lavar as mãos no rio

e perceber na água

a cicatriz do frio.

No rosto

a palidez de um sonho

ainda por sonhar.

O veludo de mãos

a tactear o corpo

esquecido de acordar.

Um arrastar de passos

na rua que não há.


Tão longe a dor
no tempo de retiro.

Em vez do gelo o vinho,

em vez do ferro o copo,

em vez da briga a festa.

Na mesa posta
da embriaguez,

a ternura servida

e convidado o riso.

Silenciado o grito.

Tão longe a dor
.
Quem dera no infinito.


Havia dias em que não aguentava o peso daquele arremedo de vida cheia. Esperavam dele o que nunca alcançara. Só sonhara. Cercado. Era como se sentia. Diziam-lhe como és importante e achava-se uma minhoca. Pediam-lhe esmolas e era ele o mendigo. Batiam-lhe palmas e só queria afagos. Pedia amor para aprender a amar. Cansado de dizer ternura como quem diz eu queria. Tentava uma saída. Era quando o descobríamos, à beira de um vago abismo, embriagado pela leitura de um livro, a gola levantada contra o frio, retirado do ruído do mundo que lhe estoirava a pele.

Licínia Quitério

6.12.06

LABIRINTOS


foto de L.Q.
É a brancura da manhã deserta
dos rostos habitantes de outros
sóis.
O rumor leve das folhas outonais

pelas veredas do teu ouvido interno.
Escutas a história de Ariadne,
a outra, a descuidada, a sem temor,

a que se riu do Minotauro e o fio largou.


Não queres saber do fim.
Afastas a folhagem.

Basta-te o labirinto do silêncio.
Teseu não mais voltou.
Se morto ou matador, agora tanto faz.


Nunca entendeu a cidade. As ruas como serpentes, subindo e descendo colinas, num alvoroço de carros e de gentes. Becos, travessas, calçadas, em profusão. Largos, praças, pracetas. Sabia que lá no fundo se deitava o rio. Dele o cheiro de marés e marinheiros de travessia. Dele a neblina sonolenta a roçar as portadas, a assustar as sardinheiras. Quantas vezes se perdeu na traiçoeira malha de caminhos? Insistia. Retrocedia, aceitava o desafio de uma curva em cotovelo, seguida de outra e outra e mais outra. Dobrava as esquinas que para ser dobradas foram feitas. Por vezes, sentia cansaço e parava num miradouro. Aproveitava para ganhar pontos de referência: uma igreja, um obelisco, um jardim, um prédio assustadoramente alto. Não voltaria a perder-se. Mas a memória estava gasta de lembrar os seus mapas interiores. E voltava a perder-se. Desistiu de entender a cidade. Aprendeu a viver nela sem tentar decifrar-lhe os enigmas. Tranquilamente, percorria os seus labirintos, deixando o acaso escolher as direcções. Até que um dia se encontrou em frente a um portão entreaberto, ao fundo de uma ruela sem brilho. Ia jurar que nunca ali tinha passado. Sentiu um arrepio quando o transpôs. Olhou para trás e viu a cidade larga, limpa, sem serpentes nem neblinas. Mas longe, longe... E seguiu em frente.

Licínia Quitério

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