28.2.24

FALAR DE ABRIL

 Falar de Abril é um trabalho grande

de lágrimas e nervos e saudades.

Falar como quem canta ou inventa

um deus tecido de alegria.

Dizer um nome novo, fazer um amor novo,

gritar e construir a fecundidade do silêncio.

Abril é um país

que engravidou de esperança e de manhã floriu.

É uma cidade

com homens a navegar na liquidez das ruas,

espingardas com mulheres à tiracolo,

sorrisos a explodir à boca dos canhões,

gritos e cantares da cor dos cravos.

Foi o dia do livro inicial

e toda a escrita foi possível.


Licínia Quitério

23.2.24

POEMA

 Sim, percebi que queres nascer. Esses toques subtis na minha mansidão, essas palavras que ressaltam nos teclados ou nos ramos das árvores, essas contracções inesperadas no meu leito de pensar, esse desassossego no parapeito da tarde, tudo isso, eu sei, é o anúncio da tua urgência de chegar ao lugar de sempre, junto aos outros que acolhi e moldei e a quem agradeci com enlevo e cansaço antes de os nomear. Serás também poema e serás o tudo e o nada de quem lê, de quem ouve, de quem se não contenta com o limiar das coisas. Eu percebo a tua pressa, o teu medo de que um dia no mundo não haja lugar para poemas ou anjos. Por agora, não te posso dizer a cor do dia de te receber. Vais aguardar, no corredor da tua espera, da minha espera, que aquela borboleta bata asas e um pólen de prata  inunde o quarto do meu segredo, do teu segredo, poema.


Licínia Quitério

18.2.24

CAMINHADA

 Avanço, paragem, retrocesso, avanço...

Assim a caminhada.

Hoje é o tempo da brutalidade, das cavernas. De novo.

Amanhã avançaremos. A montanha espera-nos. De novo.

Licínia Quitério

16.2.24

FEVEREIRO

 Vai áspera a tormenta, persistente.

Ergue-se um coro de aflições, de perdições.

Vão as dunas, vão as casas, vão as nossas certezas no sustento dos dias.

Pairam alguns afectos, alguns versos, alguns acordes incoerentes.

Ficou-nos na memória o amarelo-oiro dos narcisos que não chegaram a florir.

Sabemos que tudo eternamente se constrói e se destrói.

Sempre e nunca é uma dança que nos dói.


Licínia Quitério

13.2.24

A ESTÁTUA

 

Depois da quebra, juntar os pedaços, dar-lhes uma cor suave.

Reproduzir a estátua, num outro jardim.

Visitá-la todos os anos, afagar-lhe as fissuras.

Dizer já não, dizer ainda.

Foi duro o trabalho, longo o caminho, breve o tempo.


Licínia Quitério


5.1.24

CORES

 O poeta bebe o azul do céu

Na terra negra semeia versos

Aguarda a alvura dos lírios


LQ


CONTA-ME

 Conta-me uma história

com lobos maus raposas a voar

cegonhas sem vergonha

palavras a rimar

 

Conta

Se não contas, Mãe

com que é que eu vou sonhar


LQ

ASAS

 Tenho um verso fechado

em cada mão

São asas que teci para a viagem

Voarás, meu doido coração 


LQ

A ESPERA

 A espera é um intervalo

uma gaveta entreaberta

ansiosa pela mão

que lhe renove

o cheiro da alfazema e do limão


LQ

6.10.23

SÃO ROSAS

São rosas, senhor, meu bem.


Serão pão, serão poema 
Que diga o que eu não souber 
Da vida que me couber. 
Flor de sol, fruto de chão, 
Rosa verde, rosa plena, 
Rosa nova inda em botão. 
Se eu quiser rosas serão.
 
Meu bem, senhor, são amor.

Licínia Quitério

5.9.23

CHEGAM DE MADRUGADA

 

Chegam de madrugada

São o eco de divagações nocturnas

Vão contando o princípio de histórias

Que desejámos e esquecemos

Trazem as vozes brandas

Os gestos inacabados

Mulheres e homens

Que deixámos

Que nos deixaram

Agora sombras que sem saber invocamos

No suave despertar vão-se esbatendo

Confundindo tempos

Deformando -se

Transformando-se

Ausentando-se

A luz do dia tudo apaga

As sombras guardam

Num desvão secreto

Essa outra vida não vivida

Verdadeira como todos os sonhos


Licínia Quitério

 

 

5.7.23

OS ARCHOTES

 

os homens já não transportam archotes

são os archotes

já não lançam bombas

são as bombas

correm pelas cidades

uivam

acendem os olhos

incendeiam

as casas as ruas

outros homens sem chama

a matilha chegou às portas da cidade

deteve-se

aguarda o tempo de cinza

que virá depois da raiva

esse fogo crescido nas goelas

dos esfomeados

ardem bem as cidades

Licínia Quitério

12.4.23

CONVITE

 


27.3.23

A DECADÊNCIA

 A decadência veloz duma era, o anúncio da mudança, a relatividade do mal, a pressa e o temor de conhecer o acto final.

Travestidos os bruxos, as sibilas, indecifráveis os oráculos.

Tempo de fogo e enxurrada a adubarem a pobreza infinitamente crescente.

A natureza e os humanos em competição, no sofrimento, na mortandade.

Nem os poetas, nem eles, se apercebem das vozes nos seus pátios interiores.


Licínia Quitério

22.3.23

PÁSSAROS

 

Tens um pássaro moribundo aos pés

e não lhe tocas

Esperas que ele morra

para depois o ergueres

A tua mão não treme

Dizes: pobre ser indefeso

Os teus olhos estão secos

do pó do tempo que passou

O chão da guerra está juncado

de pássaros mortos

Dizes: pobres seres indefesos

Ficam aguados os teus olhos

com a lembrança dos rios que passaram

Os pássaros lá ficam

até serem cinza água

remorso de todos nós

pássaros indefesos


Licínia Quitério

10.3.23

 Janeiro 2005


Uma a uma foram-se as portas fechando de mansinho.
Não sei de quem a mão a convidar o vento,
a convocar o escuro, a apagar com esmero
todo o traço de beijo.
Não sei de quem a voz que foi dizendo não
a qualquer tentativa de passagem
para a margem do rio onde os cavalos
brancos se apaixonam,
naturalmente, pelas borboletas.
Não sei de quem a força que não me deixa descolar da estrada,
ganhar a asa e, ao menos, debater-me acima desta bruma.

Que brilho é este a faiscar cá no fundo de mim?

Sei.
Foi uma estrela que há muito se apagou e,
sem avisar, me fez herdeira universal
de seu átomo, seu filho intemporal,
e me ensinou a reabrir as portas,
a avivar os traços,
a ganhar a terra dos cavalos brancos,
das borboletas.

LQ, inédito

6.2.23

VEM

 Vem sereníssima

moradora

nas alturas dos sonhadores

nas profundezas dos tombados

nos mares dos fugitivos

nas celas dos cativos

 

Vem suavíssima

sabedora

da aflição dos desesperados

da nudez dos desprezados

do desespero dos perdedores

da decepção dos ganhadores

 

Vem humaníssima

amante

do silêncio nocturno

do estrépito diurno

 

Vem poderosíssima

dona

dos segredos inconfessados

da contradição dos espíritos

dos medos da paz e da guerra

dos medos da fome e da abundância

 ser deusa

ser amor

explicar a solidão de todos nós


Licínia Quitério

19.1.23

 A EUGÉNIO DE ANDRADE


Com que palavras se diz

a morte de um poeta?

Tu as disseste como quem lavra

o branco com a cal.

As disseste como quem ama o amor

em nuvens altas.

Disseste corpo, ou rio, ou ave,

como quem canta uma canção

e dela se desprende.

Com Eros te entendeste e

maduraste os frutos.

Portuguesmente foste

a casa, as dunas, o areal

e o amigo que partiu.

Disseste o som, o cheiro, a cor

e nos deste a conhecer

a palpitação, a onda do silêncio.

Thanatos te buscou,

te reclamou e contigo levou

as palavras sobrantes

para que nunca se diga

que o poeta partiu, mas que habita

em segredo, o adro, a eira, a mãe.


Licínia Quitério


17.10.22

ESQUECEREMOS

 

Não há como falar
do ódio que enlouquece
os homens
os países
o mundo conhecido
Com que palavras
havemos de lembrar
o estilhaçar das casas
e das gentes
Com que música
havemos de chorar
o silêncio
depois da queda
Que chamaremos
ao pó sobre as cidades
violadas
Esqueceremos a palavra paz
dilacerada
Esqueceremos a palavra guerra
que nos roubou a memória
para deixarmos voltar
a insanidade
E nós inermes
incapazes
nada perguntaremos

Licínia Quitério

14.10.22

MUDANÇA



Ao mesmo lugar nunca se volta.
É sempre um outro o lugar onde estivemos.
Quando o lembramos
modificamos a lembrança
como quem retoca uma pintura
tentando a perfeição que acreditamos
esteve à nossa mão.
Assim com os amigos que vão ficando longe.
Se voltam, quando voltam são já outros
tão diferentes dos que lembramos
porque os fomos mudando
criando santidade onde sabíamos
humanidade havia e mesmo essa
com toda a humana imperfeição.
Melhor é não voltar
não comparecer ao reencontro
continuar a redigir o conto
tão mentiroso
como se verdade fosse.

Licínia Quitério

4.10.22

O SUSTO


assusta
o apear das estátuas
de carne osso
como se fossem gente
assusta
o colapso das estantes
pejadas de ideias
mal pensadas
tremem as varas dos andores
e os santos assustados
desertam para a praia
como se fossem afogados
sob a metralha
o trigo já não nasce
e os corvos assustam-se
com a tremura da batalha
de susto em susto
os homens vão e falam
dos mundos indecentes
e dizem-se
pastores omnipotentes
de rebanhos trementes
inocentes
Licínia Quitério

22.9.22

IMPREVISIBILIDADE

Este não é o tempo de prever

É o tempo de ver como nunca se viu

Incerto o tempo futuro como sempre foi

Acabou-se o tempo dos adivinhos

o tempo dos profetas

Dos deuses nem se fala que perderam

os manuais de perdões e castigos

A chuva ou o tufão não se anunciam

As guerras não sabem de vitórias ou derrotas

Constante apenas o nascimento

dos filhos das mulheres, dos homens

porém sem tempo certo, sem aviso

Um pé depois do outro devagar

que o caminho não fala de chegada

e a ideia de regresso foi esquecida

É este o tempo de aprender

o tempo nosso de cada hora

o pão de todos enquanto é dia


Licínia Quitério

2.9.22

SETEMBRO

 

E vem mais um Setembro
com a memória do restolho ardido
na passagem do incêndio
na passada da guerra
Traz o olhar soturno este Setembro
como se anunciasse derrocadas
desertos
vinho azedo
dilúvios
como se fosse profeta ou adivinho
como se não soubesse
da crueldade
a assolar todos os Setembros
quando o leite das mães se faz coalho
as fontes secam
as aves esquecem a partida
Vergado este Setembro
ao peso da estiagem
o passo incerto
de quem já muito andou
e ainda arrisca
outra viagem
na busca duma flor
entre os escombros

Licínia Quitério


24.7.22

DA IGNORÂNCIA

como explicar o choro no restolho

se os humanos já ali não vivem


e o silvo a cortar os ares

a fazer-se lume e a estilhaçar a sorte

dos audazes

quem lhe deu a mão lhe segredou

o nome da distância


de perguntas andam grávidos os dias

pesados os dias

vamos pisando as respostas

há muito afundadas no chão das guerras


senhora da ignorância afasta-te de nós


Licínia Qiuitério

22.7.22

NEM OS POETAS

A decadência veloz duma era, o anúncio da mudança, a relatividade do mal, a pressa e o temor de conhecer o acto final.

Travestidos os bruxos, as sibilas, indecifráveis os oráculos.

Tempo de fogo e enxurrada a adubarem a pobreza infinitamente crescente.

A natureza e os humanos em competição, no sofrimento, na mortandade.

Nem os poetas, nem eles, se apercebem das vozes nos seus pátios interiores.

Licínia Quitério


3.7.22

CANSAÇO

 

Que sei eu do cansaço senão o que li nas pernas das mulheres

nas cordas cinzentas que lhes sobem pelas pernas

até ao peito que já foi fonte e se cansou.

Nos homens que não se cansam de plantar

para dar de comer a outros homens que tombam de cansaço

na beira dos campos, na beira dos dias.

No eterno cansaço de Sísifo, coitado,

iô-iô de deuses brincalhões

agora carrega agora sobe agora desce

e sempre e sempre sem descanso

mesmo nos quadros dos pintores famosos.

No cansaço dos poetas mais ou menos líricos

a obrigarem as palavras a dizer o que eles pensam que os outros sentem

e elas sim as palavras a ficarem cansadas e inúteis e a fugirem na primeira aragem.

No supremíssimo cansaço de Álvaro de Campos.


Licínia Quitério

29.6.22

XADREZ


Todo o mundo procurando

posição no tabuleiro.

Casa branca, casa preta,

qual das torres cai primeiro,

quantos cavalos se contam,

quem vem lá enviesado

que não deixa ver a cor.

Os infantes devorados,

alta dama vai cair.

Frente a frente,

casa branca casa negra,

senhor negro senhor branco,

e o tabuleiro a estalar,

a ruir, a regressar

à árvore de que foi feito.  

Xeque mate, xeque mate.


Licínia Quitério

26.6.22

A MAÇÃ


Entre nascer e morrer
Há sempre um fruto a amadurecer
Para poder entrar
Saboroso e fresco
Nas páginas de um livro
Que pode ser de versos
Ou de contos que se contam
Como se fossem poemas
Também eles sumarentos
Com a pele a estalar
Uma história a brotar
A procurar ser larva
Ser casulo e nele se guardar
Até ser borboleta ou então ficar
Aninhada recolhida
Silenciosa a pensar no tempo
Em que já foi maçã e já foi livro
E já foi tudo o que se possa imaginar
Que do nascer ao morrer
Muitas árvores chegam
Muitas árvores ardem
Muitas estrelas nascem Licínia Quitério

14.6.22

CHEGAM AS ROSAS



Nos sonhos da manhã
outros sonhos navegam.
Em confusão, por vezes.
Por vezes, limpidez.
Leve o desejo de ficar
por mais um tempo
ou para sempre
na morna fantasia
entre a recta e a curva
entre o sol e a sombra.
Livres do nevoeiro
nos sonhos da manhã
chegam as rosas.

Licínia Quitério

7.6.22

O UNIVERSO

Na minha mão o universo.

Sei que ele começa na semente que lancei à terra.

Expande-se o universo.

Só precisa de água para se fazer verde, aquele verde a que chamamos azul.

Na pele do universo nascem estrelas, planetas, que a minha mão afaga como se afaga o infinito.

Comovem-me a rosa, o tomate, quando me mostram a Lua, a Estrela Polar.

Um dia a minha mão perder-se-á.

O universo continuará para outras mãos onde ele sempre recomeça.


Licínia Quitério


4.6.22

VAGUEAVA

 

Vagueava pelo doirado da praia, as sandálias na mão, a baloiçar.
Afagava maternalmente um cão que corria ao seu encontro.
Baixava-se e apanhava conchas.
Devolvia-as ao mar e a boca soprava um beijo.
Acenava às gaivotas com braços de lenços brancos. Sempre sorria quando olhava o céu.
Deixava um rasto de pena nas areias.
Bailava em torno de uma pedra baça e nela acendia brilhos de fogueira.
Pisava rendas de espuma e uma poalha de estrelas salpicava-lhe a leveza da saia.
Dela não sei a cor dos olhos, dos cabelos.
Podiam mesmo não ter cor, como se diz da água.
Há quanto tempo a não vejo.
Vou perguntar ao mar se ma levou.

Licínia Quitério, 2006

30.5.22

FANTASIA


Sim
também pertenço a esta claridade matinal
suaves cortinados frescas névoas
macia a cal na fímbria dos telhados
restos de noite a deslizar nas ruas
mornas as vozes
esperança de sol na humidade das ervas
vagas promessas de árvores futuras
Manhã
se te pertenço traz-me o dia
farei dele o meu rosto
o meu vestido branco
a flor do meu papel de fantasia Licínia Quitério




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