30.6.14

ACONTECE


Acontece ficarmos presos num fiapo de mundo, os olhos da cor dos lagos nessa hora, as mãos ignorantes do que pesam as pedras, do sangue rente às pedras, do corpo da pedra que lá no alto começa e ameaça. Um rumor de batalhas havidas, homem contra homem, isto é meu, isto é teu, e a água a correr, e o vale cada vez mais fundo, cova, tumba, nada é nosso. 
Licínia Quitério

28.6.14

ERA UMA CHUVA


Era uma chuva muito leve, a pontear-nos os cabelos de frescura. A floresta tinha pequenos estremecimentos, diria, sensuais. Apetecia penetrá-la, desvendar-lhe os segredos, animais transparentes cujo nome só ela sabe. Fica
mos sempre aquém deste saber, deste sabor, deste odor de mistério e exaltação. Ficamos sempre ao largo e seguimos os caminhos travessos por medo dos golpes, das feridas, das mágoas, que a floresta guarda, que a floresta esconde, no seu chão de verde, no seu chão de lume. Era uma chuva muito leve.

Licínia Quitério

20.6.14

AS CASAS


Avança a corrosão das casas e os velhos que as habitam afagam os gatos esculpidos nos parapeitos. A velhice das casas é sempre mais antiga que a de quem nelas mora. Como os ninhos, persistem na secura e aguardam outras aves. Se eu falasse da vizinha da frente teria que dizer do ranger das madeiras e das vozes com que fala, assombrada que está por tantos mortos que dela se esqueceram. Ela desce a escada e dia a dia acrescenta-lhe um degrau. Ela sobe a escada e pensa na última subida. As casas envelhecem subitamente quando as crianças partem e deixam para trás a memória do choro, dos brinquedos. Os poetas fazem metáforas com as casas, interrogam-nas, mas é  a vizinha da frente que acende a luz a iluminar as noites da casa. Os poetas ficam cá fora, a tentar decifrar o número da porta, que só a vizinha sabe em que sombra do rosto se escondeu.

Licínia Quitério  

7.6.14

O FENO


Os meus olhos sobre o feno, sobre as ondas do mar deitado. As minhas mãos imóveis revolvendo a terra onde se movem cansados animais. Maior que as coisas vivas, o mar da minha ignorância. Certezas tenho deste não saber vida fora, campo adentro, deste espanto de agulhas de sol e de chuva, iguais, sempre iguais, nos dias e nas noites, nas horas irrequietas dos transatlânticos ou no tempo acre dos estábulos. Na fímbria dos instintos, esta fome, esta sede, este desejo de pérolas, este pálido tremor assinalando os ossos.

Licínia Quitério 

4.6.14

O LIVRO


Quando abrimos o livro pela primeira vez, uma voz soou, morna e macia, a aconchegar paisagens no nosso ouvido interno. Líamos lagos e mulheres jovens, descalças, antes dos filhos e das batalhas que haviam de fazer. Muitas páginas depois, lemos os homens, também jovens e descalços, a aprenderem a leveza das mulheres, a estranharem a força dos fios, o engenho das teias. Já o livro ia a meio quando os lírios floriram no chão das guerras, brancos, perfeitos, anjos restauradores do tempo da brandura. Aqui devíamos ter fechado o livro, antes das páginas onde tudo apodrece e um odor a aves degoladas alastra e enlouquece.

Licínia Quitério

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