26.5.11

NÃO HÁ LUZ QUE NOS BASTE






Não há luz que nos baste, ó meu amado.
Não há terra que chegue para a nossa solidão.
Observa os muros onde as pedras nascem
antes da madrugada. Quem sobe as escadas
que vão dar ao mar, ó meu amado?
Ficaram em terra as gaivotas e piam
com a voz dos barcos naufragados.
Não há céu onde poisar as penas do cansaço.
Não te assustes se as ervas recusarem o verde
e se chamar anil o pó do teu olhar.
Sabes que tudo muda, meu amado?
O lugar das coisas já é outro e outro o tempo
e outro o homem e a mulher é bem outra.
Igual sempre há-de ser o princípio e o fim.
Falemos, meu amado, da flor da amendoeira,
da sede das línguas, da fúria do vulcão,
da vida, das vidas.

Licínia Quitério

20.5.11

Estou presa



Estou  presa no verde da cidreira,
na sanguínea do bago da romã,
na coroa de céu do agapanto,
na seda do lírio, no linho,
da semente ao lençol,
do lençol à lenda de esponsais,
na noite da coruja,
no rouxinol do imperador,
na crueldade dos impérios,
no amarelecer da pele,
no rosado do pêssego.
Enredada estou na quadrícula
das sílabas, no ardil das palavras,
no labirinto dos poemas
de todos os poetas
de todos os tempos,
no cansaço das dúvidas,
do clamor das servidões,
da lentidão das utopias.
Presa e enredada estou
na soberba vontade de saber
a carne do infinito.


Licínia Quitério

14.5.11

SOU POBRE



Sou pobre. Fui sempre pobre. Serei  pobre.
Tenho tudo o que quero. Tive tudo o que quis.
O brilho do ouro incomoda-me. Tenho o sol.
Gosto das peles dos animais enquanto vivos.
Não tenho nada.  Não quero ter nada. Tudo é meu.
Tenho os quadros nos museus. Tenho o colar de Nefertite.
Tenho tudo o que as montras me oferecem.
Tenho a relva em que caminho.
Tenho as florestas que conheço e as que inventei.
Tenho todos os países do mundo e poucos visitei.
Tenho a música que compuseram para mim.
Tenho os versos de todos os poetas.
Tenho a amizade que dou e o amor que vivo.
Tenho os olhos de esmeralda da minha gata.
Tenho uma casa do meu tamanho e nela acolho
os pobres e os ricos mais pobres deste mundo.
Não sou dona. Nunca fui dona. Não serei.
Tenho o mar e a maresia.
Sou o que não tenho.

Licínia Quitério 

8.5.11

AS MULHERES



Passaram por mim. As mulheres.
Tinham cantos presos ao pescoço
e respirações de cavalos em fuga.
As mulheres. Quando rezavam
fechavam nos braços os filhos
por nascer. As mulheres. Resistiam
aos invasores com a brancura
do corpo inviolável. As mulheres.
Matavam-se para não morrerem
de vergonha. As mulheres. Dansavam
nas bodas com sangue nos cabelos.
As mulheres. Oferendas traziam
contra a ira antiquíssima dos deuses.
As mulheres. Electra. Antígona. Hécuba.
Bernarda. Adela. Yerma. As mulheres.
As cidades sempre ardem. Os homens
sempre se apunhalam. Os filhos nascem
e morrem. Há luas várias de presságios
vários. As mulheres amam  e não há guerra
que as detenha no seu destino de fontes.
Joana, Helena, Isabel, Teresa, Amélia.
Um desfile imparável de subterrâneas 
tragédias.
As mulheres.

Licínia Quitério  

3.5.11

TREPADEIRAS

As plantas esperam que os olhos das casas se fechem.
As casas sabem que um dia os animais as deixarão
e também a cal se cansará das pedras.
A solidão das casas é oblíqua, assimétrica,
um registo incongruente de gargalhadas e silêncios.
As pedras sentem o germinar das sementes
na fundura morna das soleiras.
São elas, as sementes, as madres poderosas
das trepadeiras. São as trepadeiras a nova pele,
o abraço, o manto fresco e colorido,
o futuro das casas para além dos seus olhos fechados.

Licínia Quitério

Foto cedida por uma Amiga

2.5.11

PONTO



Flores são flores. Ponto. Não são montanhas
lagos crianças descalças.
Estão nos vasos nos jardins nos compêndios
de botânica nos cemitérios. Ponto.
Não são a alegria das noivas a sabedoria
dos jardineiros a dor dos sobrevivos.
São brancas azuis verdes vermelhas amarelas. Ponto.
Não são a candura o céu a floresta
o cio o ciúme.
São minúsculas medianas grandes enormes
extraordinariamente grandes. Ponto.
Não são o grão de talco o saber dos tolos
o amor amado o desejo de voar
o desejo de ser deus.
Vivem sós em cachos em espigas
em chapéus numa só cabeça em chapéus
em cabeças diferentes. Ponto.
Não são a solidão o grupo a cidade
a multidão acéfala a multidão em festa.
São duradouras breves efémeras. Ponto.
Não são a força das mães o amor de verão
a fama dos heróis. 
São um pretexto para dar espessura ao texto. Ponto.
Não são letras  sílabas palavras.
São flores assim ditas no começo.
Ponto por ponto.


Licínia Quitério

1.5.11

MAIO



Um vídeo com todas as imperfeições de um trabalho de artesã de ocasião. Não o quero refazer. É assim, espontâneo, informal, oferecido como foi o meu, o nosso, Maio de 74. Este é o registo que me deixou na memória e no coração. Hoje o Maio é outro, com muito negro a sujar o vermelho, mas novas águas hão-de vir para lavar da lama as ruas do Maio da Alegria.

Licínia Quitério

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