24.12.14

O CISNE



Quem te via deslizar na tarde ficava preso no teu encanto, na serenidade do teu rosto, quase perfeito, quase triste.
Era impossível não pensar na dama do lago que lançava pérolas às águas na hora exacta do poente.
Sua filha serias, ou irmã, ou talvez ela tivesse voltado, com o seu colo de cisne branco, sua mudez, suas penas a fecharem-lhe os olhos.
Quem te via não sabia que nome te chamar, que o tinhas bem escondido no cerrado da boca.
Leda seria um nome, mas quem se atreveria, temendo que cantasses, e ao cantar morresses, e afinal fosses mais cisne que Mulher. 


Licínia Quitério

17.12.14

QUERIA-TE


Queria-te na agonia das cores 
quando a tarde acalmava. 
Era como se um pássaro de cinza 
esvoaçasse ao invés dos meus passos. 
Eu ainda não entendia 
o signo que trazia preso ao bico. 
Um batuque de distâncias atravessava-me 
e eu não sabia porque me doíam  
as lembranças dos mares da infância. 
Queria-te mas não te queria assim 
na hora da desistência dos mágicos. 
Queria-te mas não podia chamar-te 
ao caminho onde tudo estava, tinhas dito, 
era só descobrir. 
Não voltou o pássaro de cinza 
e o caminho continua, imenso. 
Vou juntando pedaços de mistérios, 
com a certeza de que tudo ali foi semeado, 
como disseste. 
É só saber colher. 

Licínia Quitério

10.12.14

NUVENS



São água, pouco mais.
São minúsculas gotas, são poeira de céu, são penas de anjo, ou penas de homem, é igual.
Varredura de vento, suspensão de gelos, oráculo de chuvas.
Alguém me ensine o corpo exacto de uma nuvem, a cor de cada floco, a distância que vai do azul à minha mão, o tempo de vida de um castelo de sonhos, o sabor da maresia, a duração do amor.
Se nada me ensinarem, tão pouco vale o meu olhar colado às nuvens.
Melhor deixá-las ir, deixá-las.

Licínia Quitério

1.12.14

ROSAS DA NOITE



São as rosas da noite que te embalam o sono, te segredam promessas de adornar a árvore dos dias. Rosas a preto e branco, rosas descoloridas, magníficas rosas, simetrias radiantes, invisíveis na claridade das ruas, na penumbra das casas. Só no chão das noites se alimentam, na poeira acidulada dos leitos,  e sobem, sobem, rodopiam, entrelaçam silêncios, dançam histórias sem princípio nem fim, dizem-te dorme, dorme, o teu sono é a nossa vida, o nosso tempo. Amanhã recordarás um tilintar de loiça fina, a despertar-te, e um doce aroma a inundar-te as horas. Dirás de goivos, de laranjas, de jasmins. Não saberás das rosas que vivem nas paredes das noites, rosas loucas, rosas de carne, impossíveis flores no estrépito diurno.

Licínia Quitério 
 

20.11.14

A VOZ


Foi à voz que me prendi. Traz o veludo do musgo onde apetece rolar para depois nos erguer no canto do rouxinol. Tem pausas que convidam a entrar, a encetar acordes nunca ouvidos. Liberta um impreciso aroma que procura o meu cabelo e se aconchega no travesseiro da noite. A uma voz assim dá-se colo e carícias de menino. Não é bem uma voz, é um fio de prata a ligar o visível ao invisível, o profano ao sagrado, o corpo limitado à imensidão. Não, não se trata de amor, mas de vertigem, fonte do inominado e inominável, vibração da erva antes do vento, sonoridade havida antes da morte, antes da vida.

Licínia Quitério

18.11.14

ENSOMBRAM-NOS


Ensombram-nos os caminhos sem árvores.
Pegam-nos na mão a ajudar no salto.
Dão-nos brilho e nada sabem de estrelas.
Caminham pelas bermas, sob as pontes, na orla dos precipícios.
Não nos respondem, mas é na nossa garganta que cravam as perguntas.
Circulam lentamente nos implacáveis calendários.
Hoje lava escorrente, amanhã fumarola.
Serão assombrações.
Serão mutantes, caminhantes eternos na margem da alegria.

Licínia Quitério

17.11.14

CHEGAVAS TARDE



Chegavas tarde e chamavas-me Lua e eu ficava pálida a pensar como seria a minha luz no dia em que te fosses para outro céu ou te apagasses, que ser lume também cansa, também queima.

Hoje, na minha mão uma candeia acesa a iluminar, na Lua Nova, as noites e os dias baços em que procuras a oliveira e só eu sei em que ramos te acoitas.

Licínia Quitério

11.11.14

NÃO OLHES



Não olhes o Sol no zénite. Podes cegar. Os teus olhos não suportam o desafio dos deuses. Aguarda a descida, o momento em que o teu corpo se inclinar para a relva, a tua respiração a ganhar o compasso das esferas, a tua mão a tender para a concha. Esse é o tempo do encontro. Se o teu olhar se cobrir de névoa, é o sinal de que os deuses te protegem da cegueira. É a tua hora da mais perfeita solidão. Podes até ajoelhar sobre o altar da noite. Ninguém te acordará.


Licínia Quitério 

3.11.14

CONTINUAR



Sim, vou continuar. A casa vai-se desmoronando e nós esquecemos os ofícios com que se ergue a casa. É preciso voltar ao princípio, à gruta onde tudo começou, mas desaprendemos os caminhos da planície. Achámos que o olvido era o segredo para a alegria, mas perdemos a chave do segredo. Com que vontades rasgarei a tela poluída que encobre as constelações? Com que ânimo sustentarei as novas pedras e as darei umas às outras e lhes direi vós sois a nova casa? Sei, tenho de continuar, presa aos ritmos naturais dos rios, às vozes das feras e das pombas, antes do colapso, antes de a ferrugem se apoderar dos ossos, porque depois nenhum véu há-de querer mascarar a ruína. 

Licínia Quitério  

25.10.14

CANTANDO


Bichos afogados, circulantes, espelhos no interior das pálpebras, viste-os. 
Tacteia agora este grão, este sal, esta flor marítima. 
Nasceu noite fora no limiar da minha porta, à beira-mar, sempre à beira do mar. 
Leva-me amarrada ao teu carro de vento, a flor de sal no meu cabelo. 
Os retratos dos afogados empalidecem, diluem-se, e tu não saberás que forma tinham quando vivos, quando estátuas, quando gritos de correntes. 
Há sangue novo nos pássaros, ouves, é deles o sopro de subida, no bico trazem uma palavra, sempre a mesma, do nascente das maçãs ao poente dos cravos. 
Hão-de soltá-la no coração da tempestade, e tudo será água, tritão, sereia, e um homem só sentado na praia, cantando.

Licínia Quitério

18.10.14

VÃO


Há homens que se vão embora, se cansam, desamam, desgostam e vão, sem dizerem uma palavra, sem um lamento, sem um destino.
Vão.

Há mulheres que ficam, amarram os filhos, choram, soltam imprecações, gritam, dizem és tal e qual o teu pai.
Ficam.

Os homens que vão transformam-se em gatos vadios, de telhado em telhado, chamam as gatas quando o cio aperta, não esquecem a casa, rondam-na sem serem vistos, esquecem os filhos quando crescem.
Vão.

As mulheres que ficam transforma-se em galinhas, de tanto abrirem as asas, debicarem à cata de alimento, cacarejarem.
Ficam.
Há mulheres que se cansam, desamam, desgostam, procuram esquecer o homem amado, o filho que não quiseram.
Vão.
As mulheres que vão transformam-se em cabras, procuram os cumes, saltam de penedo em penedo, rejeitam os machos, saboreiam a aspereza da erva, descem à planície, às ocultas da noite, que os homens e as mulheres querem açoitá-las.
Há homens que vão ainda que fiquem.
Há mulheres que ficam ainda que vão.
Chamamos anjos aos que vão e não ficam, ainda que fiquem e não vão.
Caem.

Licínia Quitério

12.10.14

ATRAVESSAR


Atravessar a rua como se fosse rio e navegasse.
Atravessar o rio como se fosse pena e me levasse.
Erguer o corpo ao céu em jeito de ave que voasse.
Desafiar o dia, chamar-lhe noite, pedir-lhe contas dos trabalhos nunca feitos, da escuridão das ervas, do torpor dos órfãos, das manadas dispersas, do brilho obsoleto das espadas.
Quem dera adivinhar o ponto de viragem, repor, recompor, religar, desenredar o fio da meada, perceber o recado da chuva na vidraça.
Voltar se for preciso a atravessar a rua como se eu fosse o rio e me salvasse.

Licínia Quitério

2.10.14

AFASTA-TE



Afasta-te dos mentores das tempestades. Podem ser a leveza de um chuvisco e tu, incauto, deixas-te molhar. Ou golpe de sol e deixas-te abrasar. Ou a brisa e deixas-te levar. Depois vem a torrente, o incêndio, o furacão. Foi o instante que te derrubou, traiu, violou. Dormia o medo nos teus vasos secretos e tu foste o peito dado às balas, a comoção das feridas, o choro dos salgueiros. Foge deles, abriga-te, dorme se for preciso, mas não creias, não confies, não confundas o doce com o visco. Cairás de novo, até que chegue o dia de saberes o mel, a calmaria, a rectidão das pautas, a alegria das praças. Se nada mais souberes fazer, recorda os hinos de madrugar, e canta, canta, que os danados da noite não suportam o canto, enlouquecem e vão.


Licínia Quitério  

19.9.14

ASTROS


Não vale a pena procurar astros morrentes, que para tal nos basta o espelho de água, nas voltas do tempo vário.
Grandiosa a corrida dos peixes rio acima, na sua estação de esperanças, na ignorância da força da corrente.
Maior é a vida que carregam.
Correm as folhas do Outono, monte abaixo, ao sabor da levada, arrefecida a seiva, cegas pelas esperas.
Entre o peixe e a folha um astro se levanta.
Nascentes, inaugurais, brotam palavras.

Licínia Quitério

15.9.14

VAI


Vai, traz-me do longe o pássaro de chamas.

Longe é o passeio do nosso olhar.
Volta, eu te darei a asa líquida da noite.
Perto é o bater do nosso peito contra o outro, embora longe, ao largo, num lençol navegante, remo ou vela, barco ou pedra, tanto faz.


Licínia Quitério

7.9.14

O MAR


Um homem diante do mar pode ser toda a praia, todo o céu e alguma ave passageira.
Sentado na areia, pode receber uma onda ou recusá-la.
Talvez a sétima, disseram-lhe, mas ele não sabe contar.

Licínia Quitério

Foto de O MAR, de Jean-Michel FOLON


6.9.14

ERA UM VIOLINO


Era um violino.
Nada mais.
Um chapéu preto,  um vestido vermelho, o perfil mudo de menina, uns olhos fechados, o violino preso ao vestido.
Havia o silêncio  dos olhos e o vermelho  do  vestido.
Um cão não havia, mas o saco onde tombavam moedas.
O violino tocava  e as folhas do Outono roçavam o vermelho, no ombro do vestido, no braço do violino.
Era o Outono.
Nada mais.
Um violino em silêncio, um perfil em silêncio, uma moeda no saco e outra, e outra, até ao fim do arco, até ao cão do Inverno. 


Licínia Quitério

25.8.14

OS POETAS


Os poetas morrem muito. 
Morrem antes de fecharem um poema. 
Os poetas morrem cedo. 
Morrem com a luz da madrugada
ou com a noite a que chamam madrugada. 
Não se sabe que idade têm os poetas quando morrem. 
Têm a idade do primeiro ou do último poema que foram. 
Quando morrem não acrescentam estrelas às estrelas.  
Não foi para isso que nasceram. 
Morrem e brilham, os poetas.

Licínia Quitério

foto de António José Borges

24.8.14

AS ÁGUAS


Poucos se salvam das águas.
Muitos se perdem nas águas.
Todo o mar abismo, perdição.
Mais sal, menos sal, 
mais sangue, menos sangue.
À beira-mar, à beira-vida, à beira-morte.
Dizem haver ilhas tão belas
que os homens se aventuram
e vão. Muito mar, muita dor,
até findar o mar, achar o outro lado,
que pode ser ilha ou coisa nenhuma.
Pela fome é que vamos, dizem uns.
Outros dirão: é pela ambição.
Em terra sempre fica quem 
aprontar melhor embarcação,
não vá o mar crescer e afogar
ou secar e salgar.
Salgada e seca, sim, a pele de Ulisses
cansado de marear.

Licínia Quitério

20.8.14

A LUZ DA NOITE


Vou com a luz da noite. 

Não digo escuros os dias. 
Digo a fuga do arco-íris 
e a violação do pote de ouro, 
sem ouro, só reflexos de ouro. 
Cegos os homens de cegueira nova, 
vergados à ilusão das varas. 
Veladas as mulheres, 
videntes, bruxas, pitonisas, 
a carregarem filhos, flores de areia, 
estilhaços de metal e fome. 
A luz da noite me dará a cor dos campos, 
os rostos das mulheres, 
os homens recuperados da escuridão, 
os filhos-flores. 
Para trás ficará o estrépito da guerra, 
o peso das varas e o seu rancor. 
Pode ser que a luz da noite me segrede a explicação do dia. 

Licínia Quitério

14.8.14

JÁ NÃO TE LEMBRAS


Já não te lembras de me teres falado da sobrevivência das rosas, da sua permanência nos desertos, onde os homens lhes dão nomes impróprios, ignorantes da teimosia das rosas revelando a água, prometendo novos lagos que matarão a sede, matarão a insânia. Eu recordo como o brilho dos teus olhos atraía o perfume das rosas, ainda que o inverno corresse áspero, e das rosas do quintal não houvesse mais que uma estação de esperas. Neste tempo de cardos e fogueiras, revejo as rosas que dizias, na infâmia das cidades. São as rosas de sangue, rente aos muros, a afirmarem a impermanência do ódio e a anunciarem os lagos que, disseste e não te lembras, serão o fim da  seca e da loucura. 


Licínia Quitério 

7.8.14

A BELEZA


Só a beleza nos salva da demência. 
Quando nascemos é ela que buscamos
e chorando invocamos. 
Assim se esvai a vida, no medo 
de saber que não a encontraremos, 
porque de fumo a fronteira 
entre a bela e o monstro 
e de agulhas a dor de não sabermos
se belo é o que chamamos monstro, 
se horrível é o que dizemos belo.
A demência nos mata quando
o tempo de entender se é belo ou feio
se dissipou e deu lugar à nebulosa
onde tudo cabe, tudo igual
aos outros e a si próprio.
Palácio, floresta, canto ou grito,
tudo o mesmo. Ali será que a bela
e o monstro se perderão de amores.

Licínia Quitério 

30.7.14

O ESCOMBRO


As cidades bombardeadas não são a cores nem a preto e branco. 
As cidades bombardeadas são da cor do escombro. 
Não têm céu, as cidades bombardeadas. 
Acima do pó, a ausência do céu. 
A cor do caos é indecifrável, inominável.
Do escombro erguem-se corpos imponderáveis que são fumo.
Só as cordas de fogo têm cor. Só elas permitem mapear o escombro. 

Licínia Quitério

29.7.14

CONHECER



Conhecer um lugar, melhor, reconhecê-lo. Dizer baixinho estive aqui. Desconfiar dos sentidos. Tocar a pedra e não tocar. Pronunciar um nome de erva. Ouvir a fala da nascente. Antes de tudo, pedra ou erva ou água,  dizer estive. Mais do que estive, fui. Sem alegria nem tristeza, fui. Por instantes, saber da plenitude. Tanto basta para não mais voltar.

Licínia Quitério

23.7.14

ESPERA-ME


Espera-me como se eu fosse um barco carregado de névoa a dissolver horizontes.  O meu corpo é a gávea onde subiram marinheiros, buscadores de outros céus, desistentes da terra e suas glórias. Não me julgues de velas golpeadas nem de remos quebrados. Basta-me o vento ou a sua ausência. 
Repara como envelhecem as traves da vigia. Só eu não envelheço porque amarrei o tempo a uma escuna e a mandei vogar, vogar sobre o nada a que tu chamas mar. Se de esperar te cansas, abre a janela e vem, voa, caminha, abre as águas e adormece. Eu sou a névoa, eu sou o barco, ficarás comigo a dissolver horizontes. Que te importa o olhar?

Licínia Quitério  
    

15.7.14

ESMERALDAS


Gritar esmeraldas na bainha do mar acende labaredas no profundo, em cavernas pejadas de desejos, leitos brancos de morte inacabada, de ogres soluçantes,  de territórios imaculados. Um dia fui o substantivo enrolado no colo das gaivotas. Hoje esqueci a substância do azul. Por isso lanço gritos na bainha do mar e aprazo encontros febris na maré viva, na noite da lua grande. Convocarei feitiços, sacrifícios, abençoarei a demência, a insanidade. De manhã, a semente de lótus lá estará, na minha mão direita a implorar-me a terra, a água, o homem que há-de vir, semeador sem sonhos nem memória. Acreditar será o meu martírio.

Licínia Quitério   

7.7.14

SINTO FRIO


Sinto frio e estranho-me. Vejo o sol, mas tenho frio. Um frio que me ficou de há muito, de um tempo finito de encostas soalheiras, de campainhas azuis, de morangos maduros. É um frio opaco, de despedidas e desistências, de cumes gelados, de abraços esquecidos no avesso da memória. Um frio de animais abandonados nas bermas, e quem diz animais diz irmãos, amigos, expostos à devora, à avidez da nova selva que não tem fim, não tem fim.

Licínia Quitério

4.7.14

A OLIVEIRA

,

Tu, que nasceste depois da oliveira, e os teus irmãos depois das irmãs dela, ao pé dela viveste, dela fugiste e a ela voltas e a olhas agora como se de árvore fosses mãe e, serena, a cuidas para que não desista, não se negue ao inverno e entregue os frutos. As folhas tombam sobre ti, em teu redor, e as vais somando como dias, e o total da soma nunca saberás. Por cada ramo novo, uma lembrança de outros ramos que quebraram, arderam, só por dentro, para não amedrontar os animais. Porque conheces a compulsão das seivas, tronco abaixo, tronco acima, em ti não se abre o espanto pelo rumor de vozes muito antigas que dizes, a quem te perguntar, ser o roçar de rendas no soalho. Ninguém pode saber os termos do contrato que com ela firmaste, sendo tu menina e nua e a oliveira o teu palácio de ventura.

Licínia Quitério 

30.6.14

ACONTECE


Acontece ficarmos presos num fiapo de mundo, os olhos da cor dos lagos nessa hora, as mãos ignorantes do que pesam as pedras, do sangue rente às pedras, do corpo da pedra que lá no alto começa e ameaça. Um rumor de batalhas havidas, homem contra homem, isto é meu, isto é teu, e a água a correr, e o vale cada vez mais fundo, cova, tumba, nada é nosso. 
Licínia Quitério

28.6.14

ERA UMA CHUVA


Era uma chuva muito leve, a pontear-nos os cabelos de frescura. A floresta tinha pequenos estremecimentos, diria, sensuais. Apetecia penetrá-la, desvendar-lhe os segredos, animais transparentes cujo nome só ela sabe. Fica
mos sempre aquém deste saber, deste sabor, deste odor de mistério e exaltação. Ficamos sempre ao largo e seguimos os caminhos travessos por medo dos golpes, das feridas, das mágoas, que a floresta guarda, que a floresta esconde, no seu chão de verde, no seu chão de lume. Era uma chuva muito leve.

Licínia Quitério

20.6.14

AS CASAS


Avança a corrosão das casas e os velhos que as habitam afagam os gatos esculpidos nos parapeitos. A velhice das casas é sempre mais antiga que a de quem nelas mora. Como os ninhos, persistem na secura e aguardam outras aves. Se eu falasse da vizinha da frente teria que dizer do ranger das madeiras e das vozes com que fala, assombrada que está por tantos mortos que dela se esqueceram. Ela desce a escada e dia a dia acrescenta-lhe um degrau. Ela sobe a escada e pensa na última subida. As casas envelhecem subitamente quando as crianças partem e deixam para trás a memória do choro, dos brinquedos. Os poetas fazem metáforas com as casas, interrogam-nas, mas é  a vizinha da frente que acende a luz a iluminar as noites da casa. Os poetas ficam cá fora, a tentar decifrar o número da porta, que só a vizinha sabe em que sombra do rosto se escondeu.

Licínia Quitério  

7.6.14

O FENO


Os meus olhos sobre o feno, sobre as ondas do mar deitado. As minhas mãos imóveis revolvendo a terra onde se movem cansados animais. Maior que as coisas vivas, o mar da minha ignorância. Certezas tenho deste não saber vida fora, campo adentro, deste espanto de agulhas de sol e de chuva, iguais, sempre iguais, nos dias e nas noites, nas horas irrequietas dos transatlânticos ou no tempo acre dos estábulos. Na fímbria dos instintos, esta fome, esta sede, este desejo de pérolas, este pálido tremor assinalando os ossos.

Licínia Quitério 

4.6.14

O LIVRO


Quando abrimos o livro pela primeira vez, uma voz soou, morna e macia, a aconchegar paisagens no nosso ouvido interno. Líamos lagos e mulheres jovens, descalças, antes dos filhos e das batalhas que haviam de fazer. Muitas páginas depois, lemos os homens, também jovens e descalços, a aprenderem a leveza das mulheres, a estranharem a força dos fios, o engenho das teias. Já o livro ia a meio quando os lírios floriram no chão das guerras, brancos, perfeitos, anjos restauradores do tempo da brandura. Aqui devíamos ter fechado o livro, antes das páginas onde tudo apodrece e um odor a aves degoladas alastra e enlouquece.

Licínia Quitério

28.5.14

NÓS


Não somos mais que este país de sol e sombra, a arder, a gelar, valentaço e brigão, amedrontado e frouxo, muito sexo, pouco sexo, muito siso, pouco siso, de multidões a celebrar ou a apupar o que foi, o que há de ser, o que nunca será. Tudo verde, muito verde, enquanto a seca vai, a seca vem, que assim se fazem as cousas, assim se cumprem as vidas. Somos assim, mais de riso que sorriso, mais de soluço que choro, muito guardados em nós, que de aberto nos basta este céu escandaloso que apetece fechar na gaveta dos fundos e tirá-lo de lá, mais comedido, no dia da festa que fazemos, bem ao nosso jeito, sem cuidar de saber que jeito é esse que dizemos nosso. Somos povo, povoléu, populaça, bem calhados na troça e na chalaça, a rimar, a trautear no banho as canções de antanho, as que ficaram presas no ouvido, húmidas do suor das madrugadas que tivemos ou não tivemos, conforme a história a ser contada ou a ser calada, conforme o dia acabe vestido de sossego ou de veneno. Somos assim, iguais a outros mais, mas sempre de nós mesmos desiguais.

Licínia Quitério 

21.5.14

A CHUVA



A chuva salva do deserto, condena à enxurrada. Águas de todo o ano, leves, violentas, poalha e corda, refresco e inundação, rega e aluvião. Desejo da terra, repouso do afogado. A chuva dá a erva e a borboleta e as apodrece e mata. Tal qual a doçura do amor, a desmesura da paixão. Da raiz à casca morta, tudo na árvore se ri e se alumia, quando a chuva a toca. Evanescente a voz da chuva nos beirais da vida. Nós, no centro de todos os círculos, recebendo a chuva. Nós, na orla da abundância, inquietos, pela seca, pela cheia. Não pensar destino, pensar chuva, deixar-se ir, desaguar.

Licínia Quitério

14.5.14

O HOMEM CONSTRÓI


O homem constrói. É de sua natureza fazer a casa, as casas, a cidade, as cidades. Faz e acrescenta e tudo torna mais largo, mais alto, muito muito mais alto. Babilónias vão crescendo e morrendo, enquanto os homens misturam suas falas, suas preces, suas pancadas no metal, na pedra. Orgulhosos são das obras conseguidas. É seu destino construir, subir, dizer eu fiz, eu sei, e não parar, que o mais fugaz descanso pode trazer a queda, a derrocada. As árvores observam, estendem braços, cabeleiras, sabem da construção e do seu tempo. Ocupam-se a desenhar no céu caligrafias invisíveis que contarão como tudo começou e os homens se fizeram fábrica e tijolo, tijolo e fábrica, e o orgulho se fez dor e a dor sossego e só as árvores ficaram, pode-se dizer, em carne verde e viva. 


Licínia Quitério

9.5.14

MOINHO


Estás aí, parado, exibido, e a turba a dizer foi assim, já não é. Em ti a memória da dureza do grão, da toada do vento, da moleza da água, da mudez das mulheres, na sementeira, na debulha, na ordenha do gado, na lavagem da roupa, no linho, na renda, na descoberta dos homens, a parir, a ajoelhar, a abençoar, a suplicar, a adivinhar, a amaldiçoar. Aí, parado, és sombra, assinatura, marca, nostalgia, vizinhança, anúncio. Moinho, país, à beira água, na lembrança do grão, na perdição do oiro. Conquistador do vento, sedutor, seduzido, perdido na paisagem, na promessa de flores, ou de grãos, que a seara é vasta e a ceifeira não falha.

Licínia Quitério

7.5.14

TARPEIA


Minha rocha tarpeia, meu soluço de inverno, pélago, desabrigo de fugitivo, inclemência, tremor nos invisíveis fios, minha vocação de abismos e alturas, só princípio e fim, minha ignorância absoluta de crime e castigo, minha impaciência para a normalidade dos dias, meu incontrolável desejo de partida, minha incauta memória que me trais e me alertas, me ergues e me tombas, me reergues e escreves, com a minha letra, infindáveis cadernos de folhas secas, de humidades, a dizerem da aventura de viver entre o voo e o mergulho, sabendo da tarpeia e a desprezando.

Licínia Quitério

6.5.14

CONTA-ME



Conta-me a história daqueles anos em que as tuas pernas cresciam mais do que o amor que era então uma cor difusa, um brilho suave, por vezes um clarão que logo se apagava dentro do teu peito, esse peito enorme em frente ao mundo, sem temor, sem rancor, ainda. Devagar, que a pressa de crescer esmoreceu e o melhor é estar sentado à beira vida, reclamando a memória, refazendo os caminhos nunca feitos, as paixões ou os seus lampejos. Diz-me das caixas onde guardaste as conchas, os recados, as canções proibidas, as certezas de que as flores conservariam a cor e o perfume. Sei que já não podes usar as palavras antigas para nomear o que passou. Ninguém te entenderia, apenas eu que ensurdeci e aprendi a ler nos olhos dos que passam, emudecidos, ausentes, num mundo que perdeu as dimensões, quem sabe virtual, quem sabe virtuoso. Conta-me, que eu já esqueci, que tamanho tinham as tuas pernas e as minhas no tempo de começarmos o amor. 

Licínia Quitério 

3.5.14

O ANÚNCIO


Isso foi no dia do anúncio, quando soubémos de ti porque era outra a música, toda feita de lava e de espuma, e os rosários passavam de mão em mão, tecendo a prece que se chamava Ganges ou Éfeso ou ladeira dos milagres, indistintos nomes de lugares indistintos, agora que a música nova os inundava e os rosários eram mesmo de rosas como antes não se vira, perfumadas, vivas. De esse dia pouco ainda se sabe, nem dos homens, nem das mulheres, nem dos frutos, nem das abelhas, nem dos trabalhos, se é que os houve nesse dia. Sabemos que outro haverá, que uma vez acontecido voltará,  conforme ao que foi, igual, o mesmo, porém, de tão distante, não o reconheceremos. Continuaremos, mansamente, a pousar o desejo nas mais altas pedras, a mão em pala sobre o olhar, pronunciando mares e caravelas.

Licínia Quitério  

30.4.14

O PODER


O poder é uma janela que se abre sem se abrir,
uma janela aberta por dentro, fechada por fora.
O mais longo tempo do poder é ocupado a
inventar janelas, depois a construí-las.
O poder tem rosto de olhos abertos sem pálpebras,
frios como os dos peixes quando dormem e não vêem.
Os olhos do poder são facilmente reconhecíveis,
chamam-se janelas, todas iguais, opacas, vidradas
como os olhos cegos, como os olhos mortos.
Por detrás de cada janela há a respiração ofegante
dos que projectam, ininterruptamente, mais janelas,
quem lhes dera sem vidros, só a aparência de vidros,
só a morte da transparência, só o triunfo da palidez.

Licínia Quitério

20.4.14

É PRECISO QUE CAIA


É preciso que caia a grande pedra, nossa cela e abrigo.
Que caia e se desfaça e dela fique uma lembrança
do que foram os dias imensos e os dias breves
em que fomos réptil que se apaga e águia que flameja.
Quando cair, do pó que acontecer há-de ficar um grão
a ser o coração duma semente. Vestidos de nudez,
caminharemos, inocentes, inermes, guiados pela claridade
das nascentes. Simples, iguais por fim aos sábios
e aos dementes, aos reis com trono e aos degredados.
Toda a hora será de nascimento e morte, indolor, indiferente,
de mágoas não sabidas, que um corpo assim, desfeita a pedra,
igual à luz e à treva, não cai, não se alimenta, não se esvai.
Vagueia eternamente e será mãe ou filho ou liberdade.

Licínia Quitério

10.4.14

À TARDE



Quando à tarde as dores se enovelam,
ao colo das mulheres é que chegam
os gatos macios, impenetráveis.
Seu pelo de segredos, seu olhar inefável.
É nas linhas da tarde que se prende
o sopro das manhãs, agora amortecido.
Por dentro das mulheres há vulcões,
terramotos, o fulgor do aço de perdidas
batalhas, e à boca acode-lhes o travo
da traição, à pele o branco do abandono.
Os gatos ameaçam os pulsos das mulheres
e elas deixam-se morder, imperturbáveis.
Na tarde acontece um fio de sangue
que elas lambem, saboreiam, contentes
por se saberem copo, corpo, fonte.

O tumulto do sangue, a doçura do sangue.
A mulher onde a tarde se implode,
no abuso dos gatos, e a aranha
a tecer no pessegueiro.

Licínia Quitério

30.3.14

SE NÃO SABEIS



Se não sabeis da minha sede
porque me dais água?
Se não entendeis o meu frio
porque me dais roupa?
São tão altas as minhas montanhas
e vós falais dos degraus lá de casa.
Eu não canto vós sabeis.
Porque falais então na minha voz?
Só me serve este ínfimo quarto
onde guardo o meu cofre
que vós julgais cheio.
Ignorais o nada com que o encho.
Aceito tudo menos
a vossa compreensão.

Licínia Quitério

23.3.14

QUANTAS VEZES


Quantas vezes passou já não se lembra.
De ponta a ponta foi se lhe pediram
uma côdea de pão ou uma sardinha
que nesse tempo se partia e não chegava.
Palmilhava os becos e decorava os passos
de curva a contracurva da rua que diziam
escondia lobisomens e outros homens.
Se alguma vez os viu e neles demorou
a frescura 
esqueceu
para apagar as nódoas da vergonha
a cor do asco e da gordura.
De tanto se esquecer já não pode afirmar
sem mentir que se mudou da rua ou talvez
ou talvez
a rua a esquecesse e os homens partissem
e só os lobos lembrem o seu corpo de pedra
a curvar a deitar a erguer 
e uma erva a nascer.

Licínia Quitério

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