30.7.07

E...



Permanece a memória
na escuridão dos armários e
na lã e
na seda e
no desenho do corpo e
na linfa dos frascos e
no forro das gavetas e
nas nervuras das folhas secas e
na tinta dos livros e
no odor da canela e
nas casas translúcidas
dos sonhos repetentes

Voláteis partículas da memória
transportam o fogo e
o gelo e
a fome e
a sede e
o desejo de um absurdo plenilúnio e


"O que aconteceu para escreveres isto?" - perguntei.
Tentou explicar: - "Foi uma mistura de cheiros na noite. E as cores iam mudando. E eu pensava em bolas de sabão. E não era lua-cheia. E era outra a noite. E parecia um imenso retorno. E... "

Licínia Quitério

23.7.07

REDES


Esplêndidos mantos
cobrem-lhe a recente nudez.
-Bordados de mãos exímias
no descanso das searas.-
Nunca os seus pés descalços
afloram as feridas da terra.
Em volta do leito abrigam-se
animais chegados de nenhures.
Ergue as vozes alheias e
por elas respira nas alturas.
Os olhos de água fresca
devassam a traição das redes
a ocultar a avidez dos poços.
Ri e canta e paira e avança .
Para trás ficam as redes
tecendo pragas inúteis.


lembras-te? os pescadores tinham ficado em terra a consertar as redes. pelos braços trepavam farrapos de algas. trocavam frases velozes, acentuadas de marés vivas. pareciam tranquilos. sabiam os nomes de todos os peixes. não nos viam. estavam muito atentos às aves marinhas. vinham entregar-lhes recados das ilhas. eu não conseguia desviar o olhar do emaranhado dos fios. havia pequenos caranguejos prisioneiros. alguns tinham perdido patas e continuavam a lutar. o pescador com cabelo cor de palha livrou das malhas um lutador. mirou-o. pronunciou uma palavra salgada. devolveu-o à água opaca do cais. lembras-te de me teres passado o braço pelos ombros? lembras-te de me teres dito, com falso ar de zombaria: já estás contente? este safou-se.

esta noite sonhei que era um caranguejo e tinha perdido uma pata. no forro do dia tenho repetido: redes, redes, redes. não sou capaz de recordar a cara do pescador com searas maduras na cabeça.

Licínia Quitério

16.7.07

AS VETUSTAS PEDRAS



As vetustas pedras da noite
te dirão
da decepção
das andorinhas
ao perceberem as casas sem beiral

Não chores
Suspende apenas
um pequenino susto
na mais alta ramada
do caminho

E observa
as poderosas colunas
amparando ruínas

Licínia Quitério

9.7.07

VIAGENS




Soltamos a âncora e largamos as velas
onde está escrito o mar
É urgente partir e demandar novas areias

Acostamos e caminhamos descalços
sobre o pó de pérolas antigas
Se for preciso adormecemos encharcados
de sol e de intraduzíveis murmúrios

Depressa nos cansamos do ardor na pele
do cheiro intenso das algas ressequidas
das grinaldas da festa fora da nossa aldeia

Faz pouco que chegámos e já os nossos braços
pedem o porto a estrada o abrigo
o minúsculo ponto de partida aonde é urgente chegar
e ancorar e projectar viagens
até areias novas algas secas e grinaldas de festa
que nos trarão saudades da aldeia

É ainda um menino, aprendendo a servir as mesas dos homens e das mulheres e dos meninos em férias. Nervoso, afastando a melena escura do escuro do olhar. Senti que queria entrar na conversa. Fiz-lhe perguntas vagas. Agarrou-as com avidez e desatou a falar. Dele. Do pai que tinha ido embora. Da mãe que o tinha tirado da praia. Da escola que o tinha roubado ao mar. Diz Mar como quem diz Vida. E ri baixinho, provocando o sobressalto dos ombros. Agora que lhe tiraram os barcos, sonha com outros nomes. Diz Luxemburgo, Espanha, Andorra. É por aí que passará o futuro, depois de concluído o curso de mecânica. Já se vê na "estranja", a família reagrupada, ele no seu carro, comprado com o seu dinheiro. Ele que tenta explicar-me o que é "passar a noite no mar", abrindo os braços em leque e fechando os olhitos como homem que falasse de corpo de mulher. Viagens fará este menino. E, sempre que puder, voltará para se sentar na sua praia, esperando o barco que o levará de noite ao mar. Dei-lhe um beijo, por despedida. Não se mostrou surpreendido. Deu-me um sorriso bonito e apressou-se a levantar os pratos sujos.

Licínia Quitério

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