24.3.10

LEVE A CARÍCIA



Leve a carícia deste sol de Março
com matizes de nuvens em farrapos
rasando as agudezas dos pinheiros.
Penso no sol de outras primaveras
e não sei se o que penso é somente
o desejo de alguma vez o ter sentido.
Observo os gatos em gestos obsessivos
de lavarem com sol o corpo inteiro
e é o meu corpo inteiro que se alonga
até às águas primevas da memória.
Um homem e uma mulher amam-se
desde o dia em que decidiram saber
se o amor que os outros dizem tem
o sabor de amoras rubras ou é tão só
a alegria de haver amoras nos caminhos.
Talvez eu esteja longe e tenha envelhecido
na contemplação das horas que não mudam
porque nada muda nem as dúvidas
que carregamos no côncavo do tempo.
De pouco serviria o afago deste Março
se a cicatriz do frio não morasse no longe
onde talvez eu tenha envelhecido
olhando um homem e uma mulher
que se amam decididamente na alegria
de amoras rubras em breves descaminhos.

Licínia Quitério

15.3.10

É BOM HAVER COMBOIOS


É bom haver comboios que nos levem,
de gare em gare, nos trilhos das cidades.
Cidades abertas, com cheiros de enseadas,
cidades nocturnas de cais e contrabando,
cidades fêmeas de bocas frescas e maduras,
ou as outras de suores, de milongas e tragédias.

De assalto penetramos as cidades
para saber das praças, dos museus, dos bares,
nunca da febre dos homens humilhados
nem dos rostos de cera das mulheres veladas.

De cidade em cidade nos levam os comboios.
Contentes da partida, cansados da chegada,
na mala o tempo provisório da viagem,
vamos no meio da multidão, até ao dia
em que na gare deserta saberemos os nomes
da cidade que somos, do comboio que nos leva
do princípio do mundo até ao fim do mundo.

Licínia Quitério

7.3.10

DERIVA


Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som das suas falas
que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais


As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Apeteceu-me reler Sophia.  A das palavras claras que penetram no fundo do tempo. Sempre me encanta. Começo a sentir saudades dos poetas que escreveram na luz. Há por aí tanta escuridão, tanta fealdade, em jovens poetas talentosos. Sinais dos tempos, dizem-me. Sinto pena. Por eles, por mim.

Licínia Quitério

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